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quinta-feira, 30 de junho de 2011

Os muros e a borboleta.

Ela era uma mulher linda. Olhos verdes d´água, verde mar de Ipanema no verão. Olhos vivos. Leves e harmônicos, os movimentos de seu corpo me hipnotizavam. E o sorriso? O sorriso era largo, sincero, penetrante e o riso, o riso era solto. Era linda aquela mulher. Mas, ao falar, sobre qualquer assunto, receita de bolos, astrofísica, metafísica do poder, deixava evidente que toda aquela beleza física não era nada perto da mulher interessante que aquele corpo guardava. Era inteligente, esperta, bem humorada. Seu belo corpo era um pequeno detalhe naquela linda mulher. Não era velha, pelo contrario, era uma jovem, uma jovem marcada por uma vida de experiências, boas e ruins, cicatrizes que a deixavam ainda mais bonita.

Era sim uma mulher linda. 

O que tinha de mais bonito nessa mulher era sua capacidade de sonhar. Sonhava dormindo, sonhava acordada, sonhava trabalhando. Não era avoada nem iludida, tinha os pés no chão, mas, ainda assim, dava asas aos seus sonhos e, sempre que a realidade permitia, corria e voava com eles. E se tivesse chance, se tivesse alguma chance, dava um jeito de colocar-los em prática. Sábia, sabia que eram aqueles seus maiores tesouros...

Eu a conheci assim, linda. E me apaixonei por ela no primeiro instante.  E ela me abriu as portas do seu mundo. Se entregou inteira, pois sabia que essa é a única maneira de se entregar. Me mostrou sua vida, seu coração, seus sonhos, seus medos, seus traumas, seus desejos. Ela se abriu inteira e, era, assim de perto, tão bonita quanto eu havia imaginado antes. 

Ela era a mulher mais linda que eu havia conhecido em minha vida. Era perfeita com suas imperfeições e, por isso, a mais perfeita. Ela, no pior dos dias – mau humor, TPM, cansada, insone -,  era ainda dona de um charme que só ela e eu a achava linda. Inteiramente linda.

Me achava um cara de sorte.

Eu nunca fui um homem de sonhos. Digo, de correr atrás dos sonhos. Sim, tenho os sonhos megalomaníacos, utópicos, dilatados, impossíveis, que na verdade são apenas difíceis e, por serem difíceis, morrem. Mantenho-os em segredo, segredo até de mim mesmo. Quase sempre me faltou tempo para correr atrás deles. Tempo ou coragem, sejamos sinceros. Há aqueles, menorezinhos, pra mim, e esses eu não sonho tanto, pois, em sendo possível, os realizo. Mas, o tempo... Sempre a questão do tempo esteve presente, como um problema, na minha vida. Nasci de sete meses, só pra dar um exemplo. Deveria chegar as 9:00 no trabalho, mas não chego antes das 10:15, outro exemplo. Mas sempre tive essa questão de tempo, de urgência. E também de pragmatismos. De buscar soluções, de resolver problemas. Sempre sufoquei meu lado lúdico por uma urgência de vida prática e sempre soube que eu não era feliz com isso. Me faltava alguma coisa. Desde sempre eu sabia.

E quando vi aquela mulher ali, linda, cultivando um jardim de sonhos e, incrível, colhendo-os, eu sabia que eu estaria completamente entregue. Queria aprender a lidar com sonhos e, quem iria saber, viver de sonhos. Queria aquela mulher inteira. Corpo, mente, futuros e sonhos.

Mas, sem perceber, e pra mim foi como se fosse de repente, eu a estava matando.

No inicio não percebi. Eram tantas coincidências, tantas, que em algum lugar há um livro, enorme, só com a listas das nossas coincidências. Nós mudamos muito, nascemos de cesária, nossos gostos combinam de forma mágica, temos a letra bem parecida e cinco letras no nome e quatro no sobrenome. Coincidências tolas, mas que, pra nós, eram deslumbrantes. Foi, sem sombra de dúvida, um grande encontro numa vida onde o que se tem de mais importante são os encontros. E no inicio não era apenas de coincidências que vivíamos. Havia, e isso sempre houve, sexo extraordinário. Nossos corpos se amavam e se desejavam de uma maneira tão pura e tão inteira que não havia lugar melhor do mundo pra se estar do que dentro daquela mulher. Felizmente, muito felizmente, isso nunca mudou nem acho que vá se perder...

O que não continua é que aquela mulher linda parou de sonhar. A mulher que era linda porque seus olhos brilhavam com os sonhos que buscava já não estava ali. Ela não percebeu, nem eu, que lentamente era construído muros em volta dela. Muros construídos com a minha objetividade, praticidade, experiência, ou melhor, com a minha tolice. Eu não percebi, mas, sim, aos poucos, eu colocava ali ao redor dela, tijolo por tijolo, algo que a deixaria presa. Como um pássaro, que é livre e nasceu pra voar, ela morreria ali.
Quando a encontrei eu fiquei cego de paixão. E cego, não percebi que, diante de algo tão importante, sublime e, sobretudo, inédito, era preciso desarmar-me de toda arrogância que eu tinha. Me julgava um cara experiente e quis, de alguma maneira, contar com aquela experiência... Tolo. Tolo e cego eu fui. Devia saber que, quando se vai ao encontro do novo, deve-se ir puro e, principalmente, aberto. Mas não, lá estava eu com minhas razões, minhas manias, minhas regras, minhas tesouras de podar sonhos que eu usava e estava sempre acostumado a usar em mim mesmo. Aquelas eram coisas que, por hábito, e por ter sempre carregado, estavam comigo. Aquelas eram coisas que eu realmente não precisava mais. Ou melhor, não queria mais ter. E foram essas coisas que, quase que imperceptivelmente, eu usei pra criar os muros em volta dela.

Mas o pior de todos os venenos era mesmo o ciúme. É preciso uma certa intimidade para que ele apareça. Eu achei que não ia ser o caso, que eu era maduro e que já tinha aprendido isso na vida, mas... Mas quando eu vi, estava tomado de ciúmes. Como o mundo inteiro não se apaixonaria por aquela mulher linda e maravilhosa, dona do sorriso mais doce e puro tesão. Era inconcebível crer que o mundo não a desejava. E eu, sem saber, como se houvesse de mim um duplo, um clone, um clone tomado de ciúmes, coloca cimentos e tijolos ao redor dela, nas portas da casa e a queria só pra mim. Sei que o ciúmes vem e vai. E quando vem, pode derrubar almas, pessoas, sonhos. Assim como ele precisa de intimidade para aparecer, precisa também de calma e sabedoria pra que ele se vá. Mas, mesmo quando se vai, deixa ele suas marcas.

Como, mas como eu não percebi? Foi ela que, um dia, olhou-se no espelho e não se reconheceu. Não reconhecia sua imagem, seus desejos, suas reticências. Aquelas reticências não eram dela, mas agora as usava como uma segunda pele. E, principalmente, não reconheceu os sonhos que estava sonhando... Aquela, segundo ela, não era ela. E, imediatamente, usando de toda sua sabedoria, ela se recolheu. Virou pupa.
Virou pupa para reconstruir suas asas e poder voar por além daqueles muros de verdades que não eram delas. Vai voar porque é essa sua natureza. Vai voar porque voando é feliz. 

Ah se eu tivesse percebido o muro que se erguia sem que eu soubesse. Seria eu o primeiro a quebrar com picaretas, com as mãos, com dentes aqueles tijolos. Seria o primeiro a abrir os portões, as janelas, a deixar correr o ar. Queria eu ter aprendido com ela, junto, a criar asas e não ter cortado as delas.

Quão tolo eu fui.

E agora, como tolo, cá estou, destruindo essa porra desse muro que eu não sei como eu fiz, enquanto ela, pupa, se transforma. Sei que dentro de uns dias, suas asas estarão fortes e que, mesmo que eu destrua hoje esse muro, ele ainda será visível pra ela e lá pro alto ela voará. Vai procurar novos ares, novos ninhos, nova vida. Mesmo que aqui seja bom como nunca havia sido, mesmo que agora seja tudo como ela sempre desejou. A moça linda se perdeu de mim.

Talvez eu a encontre num outro tempo, num outro momento, num sonho. Talvez ela venha me visitar num sonho, com suas asas de borboletas... Mas são apenas talvezes.

Cuidar de mim, dar tempo ao tempo, é o que resta. Resta seguir em frente, carregando na bagagem o que eu aprendi. Resta pensar em organizar essa força que é capaz de construir muros, casas, histórias e que, com a mesma rapidez que vêm, se vão. Resta admirar o que foi bonito e reconhecer o que foi bom.

Tempo ao tempo.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

A queda


Apesar do sol forte, já alto no céu azul de poucas nuvens, a ausência completa de pessoas na rua denunciava que aquele seria um dia frio. Ele abriu a janela do quarto e parou por instantes, admirando a paisagem. Era um dia muito bonito de inverno. O vento que entrou congelou todo o quarto. Ele, nu, sentia prazer naquela sensação de mudança de temperatura. Já eram nove horas. Ele já estava atrasado. Mas pensou que, já que iria desperdiçar aquele lindo no escritório, poderia se dar ao luxo de chegar atrasado uma horinha apenas. Acendeu um cigarro e apoiou-se na janela. A vista daquele apartamento era deslumbrante. Do alto daquele décimo quarto andar, sem nada a sua frente, via uma selva de pedras por quilômetros que, àquela distância, lhe dava paz.

O vento não era forte, mas, de tão frio, parecia congelar a alma, os pelos, as paredes, o vidro e o mármore no qual apoiava seus braços, enquanto fumava seu cigarro. Era um vento silencioso e afiado e parecia entrar por dentro dos ossos. E, naquela manhã bonita, essa sensação era boa. Estava nu, mas se sentia, naquele frio mais pelado do que nunca. Era como ser o vento ultrapassasse toda a imagem que ele tinha de si e o abraço. Um abraço que era gelado e ao mesmo tempo era o abraço mais verdadeiro e profundo que recebia.

Vestia apenas um cigarro, que, no durar dessa sensação, era somente cinzas. Vestia também lágrimas, poucas, que corriam delicadamente sobre seu rosto, como um carinho, uma gentileza. E não eram lágrimas tristes. Apesar de chorar, sentia-se inexplicavelmente feliz. A mente estava vazia e sem perceber, acendeu outro cigarro. A fumaça dançava à sua frente como uma bailarina, doce e precisa, num ritmo lento e preciso. E estava ele, agora, sorrindo, de pé sobre a janela, para poder sentir no corpo e na alma toda aquela felicidade. Era ele, naquele momento, senhor do seu mundo, o senhor de tudo e, ao mesmo tempo, tão pequeno, tão insignificante na beleza do mundo. Admirava o que via e sentia e deixou-se dominar por essa admiração. Era, com ela, nela, poderoso.

Sem saber porque, pulou. Seu corpo caiu lento, quase parando. O vento continuava frio, mas sua mente agora era tomada por imagens da sua vida. Os andares passavam em câmera lenta, quase parando no ar.

Lembrou das cidades que morou, das casas que teve. Desde sua infância, sua vida sempre foi mudar. Queria um canto, mas sua inquietude, ou a inquietude da sua vida, estava sempre o deslocando para um novo lugar. Lembrou da casa de chão de barro, sua primeira memória, que já era da sua terceira casa, aos dois anos de idade. Lembrou dos brinquedos quebrados, mas que eram seus brinquedos e de como era bom ter qualquer brinquedo. Lembrou do jardim e do quintal que não tinha fim, com suas árvores e sombras e do barulho de água do rio que devia passar ali perto. Lembrou da época em que dormia com sua mãe, pois não havia camas, ou quartos, suficientes para ele ter seu próprio espaço. As imagens vinham claras, nítidas, com detalhes que não se lembrava de ter guardado. Flores nos vasos, paredes descascadas, os tons de verdes no quintal. Eram detalhes e ele parecia perder horas conhecendo, de novo, aquele lugar. Lembrou da casa da avó e de como era difícil morar lá, da casa dos primos e de como era ou muito bom ou muito ruim morar lá, dependendo se os primos brincavam ou batiam nele, caçula que era. Lembrou da primeira televisão, preto e branco, numa casa alugada e de móveis alugados. Lembrou da primeira vez que andou de bicicleta, sem rodinhas, na casa do tio. Lembrou de tantas coisas boas durante aquele primeiro andar que caiu. Lembrou do primeiro beijo, do primeiro fora, da primeira trepada. Lembrou do último beijo, do último fora, da última trepada. Se esforçou para lembrar do que tinha acontecido no meio e riu, imaginando que teria que ter pulado de um prédio de 1000 andares para poder repassar a sua vida inteira. Lembrou do primeiro emprego, da primeira demissão, lembrou de amigos que queria ter tido por mais tempo, dos amigos que tinha e que não via fazia tempo. Lembrou e procurou, nessa lembrança, dar um abraço em cada um deles. Lembrou do pai e da mãe e da única vez que os viu juntos. Lembrou das suas vitórias e suas derrotas. Lembrou de sua vida inteira, ou pelo menos daquilo que lembrou de lembrar. E, caindo, sorria. Sabia que aquela vida era cheia de coisas, cheia de experiências, boas e ruins, mas que, no saldo, era boa, muito boa.

E continuava a cair, lentamente, calmamente, com se nem caindo estivesse. Chegou a cansar-se de suas lembranças. Queria de volta a sensação da janela, há pouco, onde não havia nada em sua mente, exceto a felicidade inexplicável que sentia em não sentir nada. Um vazio que não era oco, ao contrário, o preenchia por completo. Sentiu de novo em seus ossos aquele vento frio e sua mente esvaziando. A felicidade o preenchia e, sem saber porque, percebeu que não caia e, sim, voava. E, como uma bolinha sabão, uma pluma, flutuava nos braços do vento, que, como um pai, o levava no colo. Estava no céu e de lá a vista era ainda mais bonita do que a da janela do seu quarto.

Acendeu um cigarro novamente. Enquanto tragava, fechou os olhos. Não tinha o controle de onde ia, de onde estava, era levado e queria sentir isso na escuridão. Ficou de olhos fechados por algum tempo, não soube o quanto e quando abriu, estava em sua cama, nu, com o cigarro acesso nas mãos. Eram 9:00h, ele já estava atrasado, mas decidiu não ir trabalhar. Não naquele dia, nem no seguinte. E estava imensamente feliz sem saber porque... Estava frio, com um vento gostoso.

Final feliz.


era uma história de final feliz.  não sabiam. nunca souberam. e, por não saberem, duvidaram. questionaram. desistiram, mas, porque era uma história de final feliz, desistiram de desistir. eram felizes, as vezes. e as vezes, lidavam mal com isso. mas, com o tempo, esse senhor que estava sempre ao lado deles, pois era uma história de final feliz, aprenderam a lidar com isso. às vezes, se distanciavam, recolhiam-se aos seus mundos, às suas coisas, seus problemas, suas dores próprias. e essa distancia, às vezes, era boa. dava saudade. e da saudade, gerava um reencontro, um reconhecimento, um renascimento, um reamor. e, às vezes, essa distância, esse recolhimento, era ruim. pois também gerava saudade. pois um conhecia bem ao outro, e vice e versa, e sabia que um abraço podia não resolver o problema, mas, no fundo, resolvia. mas essas coisas eles foram aprendendo, com o tempo, com os desgastes, com as superações, com os reencontros, com a vida. era sim uma história de final feliz, porque nunca teve fim.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Amigos, obrigado.


Das poucas coisas que aprendi na vida, foi como é bom ter amigos por perto. Acho que isso todo mundo sabe, né? Faço questão, me esforço, para ter amigos por perto, mas meus amigos sabem, e como sabem, o quão ausente e distante eu fico às vezes. Mas aos amigos de verdade isso é uma distância só física ou temporal. Há coisas construídas que resistem à distância e ao tempo, e ai penso em algumas amizades. Mas é evidente que, já escrevi isso aqui, há alguns desses amigos que caminham em paralelo a gente, ficam longe a distância de um braço ou de um telefonema a qualquer hora. Mas não era isso exatamente o assunto...

Das poucas coisas que aprendi na vida, foi a reconhecer amigos. Não, não faço amigos em um dia, nem em dois. Não sei em quanto tempo eu viro amigo de uma pessoa. Não tenho manual.Mas tenho sim uma facilidade quase intuitiva de reconhecer amigos. E acho que, de certa forma, todos tem. Ou deveriam ter. Mas não era isso exatamente o assunto...

Das poucas coisas que aprendi na vida, foi que, apesar de saber que é bom ter amigos por perto e de saber reconhecer amigos, amigos mesmo, daqueles que você sabe vão estar lá com você na fila do geriatra, esses eu tenho poucos. Mas acho que todo mundo tem poucos amigos desses... Conheço muita gente, sei ser simpático, atencioso, legal, mas em geral estou sempre vestido de “armaduras sociais”, camadas protetoras (as vezes protetoras para mim, as vezes paras as outras pessoas!) e são poucos os que vêem além dessas camadas. Mas isso deve ser normal. E dito isso, eu posso finalmente adentrar ao assunto.

Aprendi, a muito custo, a escutar meus amigos. E escutar é muito distante de concordar. Muitos falam e é comum as pessoas terem opinião sobre tudo, sobre todos. Quase sempre, quando falam, falam da sua própria opinião, do problema sob seu ponto de vista, sob o sua capacidade de percepção seu ponto de vista. Aprendi que somos assim, eu sou assim, e que não há nada que possamos falar que não passe pelas nossas censuras. Acontece, entretanto, que nem sempre a censura, a compreensão do outro passa ou equivale pela nossa censura ou compreensão.

Confuso isso...  vou tentar de um outro jeito. Amigos são pessoas que confiamos e, quando eles nos falam, nos advertem ou têm preocupação conosco, nós os escutamos. Porém, há em nós um conjunto de valores e crenças que nos faz, a todos, diferentes. Reagimos de forma diferente a um mesmo estimulo. Animal Planet. É preciso, de algum jeito, entender que o que nos dizem os amigos precisa de uma edição “interna” para que possamos realmente escutar aquilo que nos dizem... Confuso isso ainda. Vou tentar com um exemplo...

Imagine que você está triste, magoado e que, você sabe, precisa de um ombro e um abraço. Daí, você vai procurar esse ombro e esse abraço em um amigo. Ele, ao lhe ver magoado e triste, no lugar do abraço, fica puto com que o magoou. Esbraveja, enumera uma dúzia de verdades e tal. Aquilo bate em você de uma forma estranha. Independente de ser verdade, provavelmente é e ele tem razão de estar puto, você pode se agarrar àquele ponto de vista que não era seu simplesmente porque você, precisando somente de um abraço, vai se agarrar a qualquer coisa que lhe derem. Mas, no fundo, você já sabia, o que você precisava era só de um abraço. E vai continuar precisando. Você talvez não soubesse que seria bom também ficar puto. E é pra isso que servem os amigos!

Outro exemplo: você não está bem, sem saber se vai pra cima ou vai pra baixo, se casa ou se compra uma bicicleta. Daí vem aquele amigo e fala que é obvio que você tem que comprar uma bicicleta. Isso porque era o que ele faria. Todo mundo fala “se eu fosse você...”, mas quase ninguém sai realmente de si e projeta-se no outro. Ele compraria uma bicicleta e ele tem as razões dele pra isso e não dá pra afirmar que as razões dele seriam as suas. Não é por mal isso, mas é como as pessoas são. Eu, inclusive.

Brinco que eu recuso conselhos, que se eles fossem bons, me seriam vendidos. Mas não é verdade. 
Escuto-os, sim, mas do meu jeito. E muito atentamente, tentando ver, além das razões e dos motivos, se aquilo que me é dito é algo que é dito como se quem fala estivesse realmente no meu lugar. Observando se eu pensaria realmente naquilo, naquele momento mesmo, se aquela opinião tem mágoa ou raiva ou emoção própria daquela pessoa. Escuto, mas escuto com um filtro. Escuto, sabendo que não vou escutar soluções de fatos, mas sim a voz de pessoas queridas. Escuto sabendo que soluções estão dentro da gente e que os conselhos de amigos são carinhos que muitas vezes nos fazem ver essas soluções mais facilmente.

Dito isso, vamos ao mais importante. Amo meus amigos e queria agradecer a paciência que eles têm comigo, aos conselhos e broncas que recebo, aos abraços e carinhos, aos risos e as velhas piadas sem graça da qual ainda rio, aos afastamentos necessários e períodos de convivências intensas, às histórias compartilhadas, à felicidade aumentada pela razão de nos vermos, uns aos outros, felizes, às ligações que recebo na hora exata que preciso, às ligações que queria atender e não consigo, à simples e grandiosa oportunidade de compartilhar o tempo com vocês.

Amigos, muito obrigado!

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Eram feitos de suor e sonhos

Era óbvio, explícito, claro e evidente. Era certo, previsível, uma verdade desesperada e estridente. Era uma questão de tempo. O que não se sabia era quando aconteceria.
 
Eram intensos, no amor e na loucura, na raiva e na doçura. Amavam-se, disso não havia dúvidas, por mais que fossem evidentes as diferenças, os atritos, os tapas e as mágoas. Não existia, para eles, amor sem mágoa. Era implícito que, amando, haveria mágoas. Odiavam-se, não como inimigos, mas como verdades antagônicas em um embate, como se fossem, um ao outro, o reflexo perfeito das imperfeições que teimavam em esconder. Eram feitos de suor e sonhos, mais sonhos que suor, e às vezes feitos de sede e fogo. Não eram, não sabia ser, não podiam ser, indiferentes um ao outro. Contagiavam-se e se contaminavam de emoções, às vezes na mesma direção, às vezes não. A felicidade de um podia causar no outro felicidade maior ou um ódio gigantesco, dependendo das razões, das causas, do envolvimento. Amavam deixar o outro feliz, ser o motivo e a razão, mas morriam, se desfaziam, quando não eram. Era assim que se traiam, sendo felizes com o resto da vida que não fossem eles em eles mesmos.

Poucos sabiam, de fora, como eles sobreviviam aquela relação. E aquele casal sabia viver se fosse assim, na base do exagero, beirando o desespero. Como se só houvesse esperança na desesperança. Completavam-se e se bastavam e viviam aquela simbiose doentia.


Era evidente o que aconteceria, todos percebiam. Passaram-se anos, coisas mudaram, o tempo era outro, pessoas vieram e se foram, mas, na essência, tudo estabelecido naquelas regras permanecia. Eram feitos de pedra e insistência. E, um dia, aconteceu.


Ela entrou em casa, falante, vibrante, entusiasmada com as novidades do seu dia, querendo que ele fosse sua platéia e lhe dedicasse a atenção devida. Não eram grandes novidades, ou melhor, não se soube se eram ou não. Nunca se soube. Ele, pela primeira vez em todos aqueles anos não conseguiu ter qualquer reação às palavras e ao sentimento da mulher. Enquanto ela falava, ele ficava inerte, estático a sua frente, vendo-a falar, sem de fato escutar ou compreender qualquer palavra. Não sorriu. Não rosnou. Nem sequer mexeu a sobrancelha. Via a mulher gesticulando virtuosamente, falando e falando e simplesmente não a reconheceu. Era como se nunca a tivesse conhecido, como se viesse a jogar um jogo por longo tempo e, bem antes do fim, esquecesse as regras e perdesse todo o interesse. Ele olhava a mulher e se perguntava quem era ela. E quem era ele.


Ela demorou a perceber o que estava acontecendo e, bem verdade, nunca chegou de fato a compreender aquela cena. Soube, apenas, que algo acontecia ali naquele momento. Tentou as coisas práticas como, você está bem, você está com fome, você está doente, aconteceu alguma coisa, você tem uma amante, mas o homem se bastava em lhe responder diretamente as perguntas, sem dar chance a mulher de entender a questão. Ele também não entendia. Sabia exatamente que, desde que ela havia adentrado aquele apartamento, não a amava mais, mas não sabia a razão e ele precisava de uma razão para falar. E, pela primeira vez naquela turbulenta relação, se fez o silêncio. Um silêncio frio e escuro, sentimentos que ambos, desde sempre, nunca haviam sentido.


O silêncio fez-se por dias. Tantos que não se sabe ao certo quantos foram.

Ela precisou de tempo para saber o que acontecia. Apegou-se às questões práticas como trabalhar, comprar comida, cozinhar e, em seu desespero, gritava ou gargalhava com as plantas, falava com as paredes, chorava no chuveiro. Exercitava sua loucura sem seu parceiro e não conseguia compartilhar com ele o mesmo olhar vazio ou mesmo aquele beijo frio. Imaginava coisas mil, seguiu-o até o trabalho, contratou detetive, sugeriu que entrassem em uma academia, queria mudar algo que havia acabado de mudar, mas no fundo, no fundo, queria ela que fosse tudo como antes. Ele, mergulhado em seu silêncio, buscava explicações para coisas inexplicáveis e nada queria e observava-a, com a reticência daqueles que deixam de amar, perplexo com as loucuras daquela mulher.

Aconteceu o que todos achavam que ia acontecer. O que era, desde sempre, evidente e obvio. Sabia o mundo que eles não podiam ser felizes sendo como eram e que, um dos dois, em algum tempo, perceberia o tamanho da loucura em que estavam mergulhados e sairia dessa.


O que não se sabia era o que aconteceria depois.


Ele saiu de casa, isso era óbvio, mas não se sabe a onde ele foi nem onde está agora. Ela, depois de certo tempo, após muito chorar, emagrecer e envelhecer, decidiu viajar em suas férias e não voltou. Estão, ambos, desaparecidos.


Dizem aqueles, parte dos mesmos que sabiam que algo aconteceria, que ela o matou. Dizem com detalhes, sabe-se lá como, e falam que ela o chamou em casa tentando seduzi-lo e dado as negativas dele, o esfaqueou no pescoço, deixando todo sangue escorrer pelo chão da sala enquanto lhe beijava a boca. Outros discordam em parte, dizem que ela não teria a coragem de usar uma faca e que o teria envenenado logo que ele entrou na casa. Desses que dizem, concordam todos que ela ainda está, louca, naquela casa e preserva o corpo como se o homem ainda estivesse vivo. Esses acreditam ouvir os gritos dela, nas horas altas da madrugada.


Há outros que são capazes de jurar que ela nunca o mataria. Mas não dizem o mesmo dele e contam que ele a teria sufocado, bêbado, até a morte num desses encontros que certamente faziam para seus corpos matarem a saudade. Dizem ainda que ela está enterrada dentro de alguma parede daquele apartamento, que até hoje continua fechado.


Ainda outros dizem que morreram os dois. Que, sim, estavam todos certos, aqueles que diziam ser impossível ser feliz vivendo daquela maneira e o casal, que achava que só era possível viver assim. Que morreram ambos em silêncio, um ao lado do outro, um logo após o outro e que só assim tiveram paz.


E, finalmente, há quem diga, e são esses os mais românticos, que o homem e a mulher continuam vivos e que se amam do jeito que podem e que aprenderam com o silêncio uma nova maneira de seres felizes e agora o são mais do que nunca. Sabiam que aquele desamor era só a necessidade de sossego e que a paixão nunca havia abandonado aquele casal. Eles sumiram somente porque não agüentavam mais o mundo dizendo a toda hora e a todo o momento algo iria acontecer e sabiam que não precisavam explicar isso a ninguém.


Mas o que de fato aconteceu, não se sabe. Eles sumiram e há só o que dizem os outros.

domingo, 12 de junho de 2011

Labirinto.

Eu não sei como viemos parar nesse labirinto. Eu falei que ia pra direita depois da quinta briga, mas você decidiu ir na direção contraria. Nos desencontramos. Voltei pra te procurar e perdi minhas referências. Quando voltei, não te encontrei mais. Eu não sei se a direita era o caminho certo ou a esquerda, mas o fato é que estamos os dois perdidos nesse labirinto. Certo seria não brigarmos e talvez ainda estaríamos juntos. Mas, mesmo se não brigássemos, não seria certo que estaríamos juntos. Teríamos um talvez. Poderíamos, mesmo sem brigas, nos distrair com as árvores, os pássaros, as plantas, o sol, a vida que há nesse labirinto e, num desses instantes, poderíamos soltar as mãos e nos perder. O caminho é tão belo e cheio de novidades que poderíamos nos perder. Talvez você simplesmente fosse na direção contraria. Mas nos perdemos por brigas e por brigas as quais eu não lembro o motivo, o que me faz pensar que eu perdi você e não fomos nós que nos perdemos.  Talvez voltar fosse o caminho e você esteja na direção certa e eu devesse ter voltado antes da quinta briga. Devíamos, eu sei, não ter brigado, mas por algum motivo, aquela coisa pequena e tosca, aquela besteira, era importante. Mas era, sempre foi, uma besteira. Sei lá, não importa. Não importa falar de motivos, nem de culpas. O passado está lá para aprendermos com ele, mas nosso futuro depende de nós, agora, no presente.

Eu não sei como viemos parar nesse labirinto. O caminho onde antes havia árvores, pássaros, plantas, sol, vida, agora está cinza, deserto. Há paredes sujas em longas retas, com pequenos becos ao redor. E bate um vento frio e comprido. É noite e o frio parece que vai apertar. E pensar que você está também perdida nesse lugar. Será que você está por aqui? Onde será que você está? Penso que você ainda deve estar por aqui e, antes de pensar em sair desse lugar, queria te encontrar. Acho que passaríamos por essa noite fria abraçados, certamente assustados, mas, ao amanhecer do dia, veríamos de novo o sol e o calor e o caminho bonito. Veríamos que as paredes eram apenas sombras e que tudo ali estava em seu lugar. Mas não estarão todas as coisas em seu lugar se você não estiver aqui. Talvez acordássemos e ainda sim víssemos o deserto e o frio, mas ainda assim poderíamos nos aquecer e procurar um saída juntos. Por isso mergulho nesse quebra cabeça, a procura de você. Sem saber se vou te encontrar. Sem saber se, quando te encontrar, você não tenha traçado outro caminho, mudado de destino ou qualquer outra coisa.

Completamente perdido. Sem rumo, sem direção. Se eu não lhe achar, vou esperar que um dia você me ache. Estarei, como sempre, a caminhar. Talvez eu ache um rumo, uma direção, talvez eu me encontre. E, talvez, nossos caminhos se cruzem e, talvez, possamos dar as mãos de novo e caminhar juntos. Mentira. Falo isso para me confortar, somente para me confortar. Para buscar dentro de mim algum calor. O que eu queria era você agora me dizendo Acorda, isso é um pesadelo e você está atrasado pra trabalhar, mas antes de levantar, me beija e me ama. Mas eu to acordado e preso entre essas paredes, podendo seguir qualquer direção, e sem querer direção nenhuma senão o caminho de volta. Há silêncio e só por aqui.

Eu não sei como viemos parar nesse labirinto, mas gostaria de sair daqui com você.

Havia um plano.


havia um plano, havia um motivo, uma razão qualquer, desconhecida, para o tudo que nos aconteceu. havia um sentido escondido por trás daquelas sensações dissonantes e beligerantes. como se fosse um prazo final, inadiável, no qual até ele, tudo, absolutamente tudo, fosse preciso ser resolvido. dentro do olho do furacão não se vê sua força, nem sua destruição nem sua beleza, sua capacidade de modificar o mundo.

seria tão bom se pudéssemos ser condutores de nossas mudanças. nós próprios diríamos o que mudar, quando e em que tempo. enfrentaríamos dores na medida em que nos sentíssemos preparados à enfrentá-las, venceríamos desafios tendo a certeza de que poderíamos vencê-los, faríamos tudo dentro das nossas capacidades.

mas, e ai? onde estaria a surpresa? onde estaria a superação que nos mostra que somos melhores (ou piores) do que realmente somos? e quem disse que teríamos a consciência das coisas que teríamos que enfrentar? somos as vezes acomodados com a vida que levamos. nos adaptamos aos problemas, às pedras nos sapatos, e caminhamos com aquela dor que o tempo anestesia. ou pior, não mudamos porque só sabemos fazer as coisas daquele jeito, daquela forma e, se as coisas não mudam por si mesmo, não aprendemos novos jeitos de viver e crescer.

havia um plano. um motivo por trás do caos. um sentido naquele vendaval. e, sem saber exatamente qual era esse sentido, pois o vento, se não venta forte como antes, ainda tem a força para derrubar casas, e cá ainda estamos no olho do furacão, posso já dizer que ele nos levou a outro lugar. um lugar onde nós já não somos o que éramos antes. um lugar onde as coisas estão fora do lugar. mas que esses são seus novos lugares.

não nos resta opção senão confiarmos nesse plano e nas razões alem dos nossos sentidos. e confiarmos que nem tudo está sob nosso controle e que, sim, há algo que, involuntariamente nos move.

confiemos no plano.


sexta-feira, 10 de junho de 2011

Conto da Ilha Desconhecida (Saramago)

Cada vez que eu leio esse conto, leio de um jeito diferente. E se abre um novo mundo. Ele fica aqui pra que eu o guarde. E releia-o mais vezes. Leia, releia, você vai se surpreender como ele muda.


"Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era a das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinha a pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho ao contrário, até chegar ao rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado se ria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse de maré.
Contudo, no caso do homem que queria um barco, as coisas não se passaram bem assim. Quando a mulher da limpeza lhe perguntou pela nesga da porta, Que é que tu queres, o homem, em lugar de pedir, como era o costume de todos, um título, uma condecoração, ou simplesmente dinheiro, respondeu, Quero falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar, tapando-se com a manta por causa do frio. Entrar e sair, só por cima dele. Ora, isto era um enorme problema, se tivermos em consideração que, de acordo com a pragmática das portas, ali só se podia atender um suplicante de cada vez, donde resultava que, enquanto houvesse alguém à espera de resposta, nenhuma outra pessoa se poderia aproximar a fim de expor as suas necessidades ou as suas ambições. À primeira vista, quem ficava a ganhar com este artigo do regulamento era o rei, dado que, sendo menos numerosa a gente que o vinha incomodar com lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e mais descanso, para receber, contemplar e guardar os obséquios. À segunda vista, porém, o rei perdia, e muito, porque os protestos públicos, ao notar-se que a resposta estava a tardar mais do que o justo, faziam aumentar gravemente o descontentamento social, o que, por seu turno, ia ter imediatas e negativas consequências no afluxo de obséquios. No caso que estamos narrando, o resultado da ponderação entre os benefícios e os prejuízos foi ter ido o rei, ao cabo de três dias, e em real pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o intrometido que se havia negado a encaminhar o requerimento pelas competentes vias burocráticas. Abre a porta, disse o rei à mulher da limpeza, e ela perguntou, Toda, ou só um bocadinho. O rei duvidou por um instante, na verdade não gostava muito de se expor aos ares da rua, mas depois reflexionou que pareceria mal, além de ser indigno da sua majestade, falar com um súdito através de uma nesga, como se tivesse medo dele, mormente estando a assistir ao colóquio a mulher da limpeza, que logo iria dizer por aí sabe Deus o quê, De par em par, ordenou. O homem que queria um barco levantou-se do degrau da porta quando começou a ouvir correr os ferrolhos, enrolou a manta e pôs-se à espera. Estes sinais de que finalmente alguém vinha atender, e que portanto a praça não tardaria a ficar desocupada, fizeram aproximar-se da porta uns quantos aspirantes à liberalidade do trono que por ali andavam, prontos a assaltar o lugar mal ele vagasse. O inopinado aparecimento do rei (nunca uma tal coisa havia sucedido desde que ele andava de coroa na cabeça) causou uma surpresa desmedida, não só aos ditos candidatos mas também à vizinhança que, atraída pelo repentino alvoroço, assomara às janelas das casas, no outro lado da rua. A única pessoa que não se surpreendeu por aí além foi o homem que tinha vindo pedir um barco. Calculara ele, e acertara na previsão, que o rei, mesmo que demorasse três dias, haveria de sentir-se curioso de ver a cara de quem, sem mais nem menos, com notável atrevimento, o mandara chamar. Repartido pois entre a curiosidade que não pudera reprimir e o desagrado de ver tanta gente junta, o rei, com o pior dos modos, perguntou três perguntas seguidas, Que é que queres, Por que foi que não disseste logo o que querias, Pensarás tu que eu não tenho mais nada que fazer, mas o homem só respondeu à primeira pergunta, Dá-me um barco, disse. O assombro deixou o rei a tal ponto desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a chegar-lhe uma cadeira de palhinha, a mesma em que ela própria se sentava quando precisava de trabalhar de linha e agulha, pois, além da limpeza, tinha também à sua responsabilidade alguns, trabalhos menores de costura no palácio como passajar as peúgas dos pajens. Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava a procurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo-as para os lados, enquanto o homem que queria um barco esperava com paciência a pergunta que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível comodidade, na cadeira da mulher da limpeza, Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para que não mo dês, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar, Às minhas ordens, com os meus pilotos e os meus marinheiros, Não te peço marinheiros nem piloto, só te peço um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares, será para mim, A ti, rei, só te interessam as ilhas conhecidas, Também me interessam as desconhecidas quando deixam de o ser, Talvez esta não se deixe conhecer, Então não te dou o barco, Darás. Ao ouvirem esta palavra, pronunciada com tranquila firmeza, os aspirantes à porta das petições, em quem, minuto após minuto, desde o princípio da conversa, a impaciência vinha crescendo, e mais para se verem livres dele do que por simpatia solidária, resolveram intervir a favor do homem que queria o barco, começando a gritar, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. O rei abriu a boca para dizer à mulher da limpeza que chamasse a guarda do palácio a vir restabelecer imediatamente a ordem pública e impor a disciplina, mas, nesse momento, as vizinhas que assistiam das janelas juntaram-se ao coro com entusiasmo, gritando como os outros, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. Perante uma tão iniludível manifestação da vontade popular e preocupado com o que, neste meio tempo, já haveria perdido na porta dos obséquios, o rei levantou a mão direita a impor silêncio e disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu, os meus marinheiros são-me precisos para as ilhas conhecidas. Os gritos de aplauso do público não deixaram que se percebesse o agradecimento do homem que viera pedir um barco, aliás o movimento dos lábios tanto teria podido ser Obrigado, meu senhor, como Eu cá me arranjarei, mas o que distintamente se ouviu foi o dito seguinte do rei, Vais à doca, perguntas lá pelo capitão do porto, dizes-lhe que te mandei eu, e ele que te dê o barco, levas o meu cartão. O homem que ia receber um barco leu o cartão de visita, onde dizia Rei por baixo do nome do rei, e eram estas as palavras que ele havia escrito sobre o ombro da mulher da limpeza, Entrega ao portador um barco, não precisa ser grande, mas que navegue bem e seja seguro, não quero ter remorsos na consciência se as coisas lhe correrem mal. Quando o homem levantou a cabeça, supõe-se que desta vez é que iria agradecer a dádiva, já o rei se tinha retirado, só estava a mulher da limpeza a olhar para ele com cara de caso. O homem desceu do degrau da porta, sinal de que os outros candidatos podiam enfim avançar, nem valeria a pena explicar que a confusão foi indescritível, todos a quererem chegar ao sítio em primeiro lugar, mas com tão má sorte que a porta já estava fechada outra vez. A aldraba de bronze tornou a chamar a mulher da limpeza, mas a mulher da limpeza não está, deu a volta e saiu com o balde e a vassoura por outra porta, a das decisões, que é raro ser usada, mas quando o é, é. Agora sim, agora pode-se compreender o porquê da cara de caso com que a mulher da limpeza havia estado a olhar, foi esse o preciso momento em que ela resolveu ir atrás do homem quando ele se dirigisse ao porto a tomar conta do barco. Pensou ela que já bastava de uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado a hora de mudar de ofício, que lavar e limpar barcos é que era a sua vocação verdadeira, no mar, ao menos, a água nunca lhe faltaria. O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer começado a recrutar os tripulantes, já leva atrás de si a futura encarregada das baldeações e outros asseios, também é deste modo que o destino costuma comportar-se connosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há mais que ver, é tudo igual.
Andando, andando, o homem chegou ao porto, foi à doca, perguntou pelo capitão, e enquanto ele não chegava deitou-se a adivinhar qual seria, de quantos barcos ali estavam, o que iria ser o seu, grande já se sabia que não, o cartão de visita do rei era muito claro neste ponto, por conseguinte ficavam de fora os paquetes, os cargueiros e os navios de guerra, tão-pouco poderia ser ele tão pequeno que resistisse mal às forças do vento e aos rigores do mar, o rei também havia sido categórico neste ponto, Que navegue bem e seja seguro, foram estas as suas formais palavras, assim implicitamente excluindo os botes, as faluas e os escaleres, os quais, sendo bons navegantes, e seguros, conforme a condição de cada qual, não tinham nascido para sulcar os oceanos, que é onde se encontram as ilhas desconhecidas. Um pouco afastada dali, escondida por trás de uns bidões, a mulher da limpeza correu os olhos pelos barcos atracados, Para o meu gosto, aquele, pensou, porém a sua opinião não contava, nem sequer havia sido ainda contratada, vamos ouvir antes o que dirá o capitão do porto. O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto a baixo, e fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de navegação, ao que o homem respondeu, Aprenderei no mar. O capitão disse, Não to aconselharia, capitão sou eu, e não me atrevo com qualquer barco, Dá-me então um com que possa atrever-me eu, não, um desses não, dá-me antes um barco que eu respeite e que possa respeitar-me a mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu não és marinheiro, Se tenho a linguagem, é como se o fosse. O capitão tornou a ler o cartão do rei, depois perguntou, Poderás dizer-me para que queres o barco, Para ir à procura da ilha desconhecida, Já não há ilhas desconhecidas, O mesmo me disse o rei, O que ele sabe de ilhas, aprendeu-o comigo, É estranho que tu, sendo homem do mar, me digas isso, que já não há ilhas desconhecidas, homem da terra sou eu, e não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcarmos nelas, Mas tu, se bem entendi, vais à procura de uma onde nunca ninguém tenha desembarcado, Sabê-lo-ei quando lá chegar, Se chegares, Sim, às vezes naufraga-se pelo caminho, mas, se tal me viesse a acontecer, deverias escrever nos anais do porto que o ponto a que cheguei foi esse, Queres dizer que chegar, sempre se chega, Não serias quem és se não o soubesses já. O capitão do porto disse, Vou dar-te a embarcação que te convém, Qual é ela, É um barco com muita experiência, ainda do tempo em que toda a gente andava à procura de ilhas desconhecidas, Qual é ele, Julgo até que encontrou algumas, Qual, Aquele. Assim que a mulher da limpeza percebeu para onde o capitão apontava, saiu a correr de detrás dos bidões e gritou, É o meu barco, é o meu barco, há que perdoar-lhe a insólita reivindicação de propriedade, a todos os títulos abusiva, o barco era aquele de que ela tinha gostado, simplesmente. Parece uma caravela, disse o homem, Mais ou menos, concordou o capitão, no princípio era uma caravela, depois passou por arranjos e adaptações que a modificaram um bocado, Mas continua a ser uma caravela, Sim, no conjunto conserva o antigo ar, E tem mastros e velas, Quando se vai procurar ilhas desconhecidas, é o mais recomendável. A mulher da limpeza não se conteve, Para mim não quero outro, Quem és tu, perguntou o homem, Não te lembras de mim, Não tenho idéia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza, A do palácio do rei, A que abria a porta das petições, Não havia outra, E por que não estás tu no palácio do rei a limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos, Então estás decidida a ir comigo procurar a ilha desconhecida, Saí do palácio pela porta das decisões, Sendo assim, vai para a caravela, vê como está aquilo, depois do tempo que passou deve precisar de uma boa lavagem, e tem cuidado com as gaivotas, que não são de fiar, Não queres vir comigo conhecer o teu barco por dentro, Tu disseste que era teu, Desculpa, foi só porque gostei dele, Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar. O capitão do porto interrompeu a conversa, Tenho de entregar as chaves ao dono do barco, a um ou a outro, resolvam-se, a mim tanto se me dá, Os barcos têm chave, perguntou o homem, Para entrar, não, mas lá estão as arrecadações e os paióis, e a escrivaninha do comandante com o diário de bordo, Ela que se encarregue de tudo, eu vou recrutar a tripulação, disse o homem, e afastou-se.
A mulher da limpeza foi ao escritório do capitão para recolher as chaves, depois entrou no barco, duas coisas lhe valeram aí, a vassoura do palácio e a prevenção contra as gaivotas, ainda não tinha acabado de atravessar a prancha que ligava a amurada ao cais e já as malvadas estavam a precipitar-se sobre ela aos guinchos, furiosas, de goela aberta, como se ali mesmo a quisessem devorar. Não sabiam com quem se metiam. A mulher da limpeza pousou o balde, meteu as chaves no seio, firmou bem os pés na prancha, e, redemoinhando a vassoura como se fosse um espadão dos tempos antigos, fez debandar o bando assassino. Foi só quando entrou no barco que compreendeu a ira das gaivotas, havia ninhos por toda a parte, muitos deles abandonados, outros ainda com ovos, e uns poucos com gaivotinhos de bico aberto, à espera da comida, Pois sim, mas o melhor é mudarem-se daqui, um barco que vai procurar a ilha desconhecida não pode ter este aspecto, como se fosse um galinheiro, disse. Atirou para a água os ninhos vazios, quanto aos outros deixou-os ficar, até ver. Depois arregaçou as mangas e pôs-se a lavar a coberta. Quando acabou a dura tarefa, foi abrir o paiol das velas e procedeu a um exame minucioso do estado das costuras, depois de tanto tempo sem irem ao mar e sem terem de suportar os esticões saudáveis do vento. As velas são os músculos do barco, basta ver como incham quando se esforçam, mas, e isso mesmo sucede aos músculos, se não se lhes dá uso regularmente, abrandam, amolecem, perdem nervo, E as costuras são como os nervos das velas, pensou a mulher da limpeza, contente por estar a aprender tão depressa a arte de marinharia. Achou esgarçadas algumas bainhas, mas contentou-se com assinalá-las, uma vez que para este trabalho não podiam servir a linha e a agulha com que passajava as peúgas dos pajens antigamente, quer dizer, ainda ontem. Quanto aos outros paióis, viu logo que estavam vazios. Que o da pólvora estivesse desmunido, salvo uns pozinhos negros no fundo, que primeiro mais lhe pareceram caganitas de rato, não lhe importou nada, de facto não está escrito em nenhuma lei, pelo menos até onde a sabedoria duma mulher da limpeza é capaz de alcançar, que ir em busca duma ilha desconhecida tenha de ser forçosamente uma empresa de guerra. Já a ralou, e muito, a falta absoluta de munições de boca no paiol respectivo, não por si própria, que estava mais do que acostumada ao mau passadio do palácio, mas por causa do homem a quem deram este barco, não tarda que o sol se ponha, e ele a aparecer-me aí a clamar que tem fome, que é o dito de todos os homens mal entram em casa, como se só eles é que tivessem estômago e sofressem da necessidade de o encher, E se já traz marinheiros para a tripulação, que são uns ogres a comer, então é que não sei como nos iremos governar, disse a mulher da limpeza.
Não valia a pena ter-se preocupado tanto. O sol havia acabado de sumir-se no oceano quando o homem que tinha um barco surgiu no extremo do cais. Trazia um embrulho na mão, porém vinha sozinho e cabisbaixo. A mulher da limpeza foi esperá-lo à prancha, mas antes que ela abrisse a boca para se inteirar de como lhe tinha corrido o resto do dia, ele disse, Está descansada, trago aqui comida para os dois, E os marinheiros, perguntou ela, Não veio nenhum, como podes ver, Mas deixaste-os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E tu, que lhes respondeste, Que o mar é sempre tenebroso, E não lhes falaste da ilha desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conheço, Mas tens a certeza de que ela existe, Tanta como a de ser tenebroso o mar, Neste momento, visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as águas, e não é verdade, Que pensas fazer, se te falta a tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu, Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa. O incêndio do céu ia esmorecendo, a água arroxeou-se de repente, agora nem a mulher da limpeza duvidaria de que o mar é mesmo tenebroso, pelo menos a certas horas. Disse o homem, Deixemos as filosofias para o filósofo do rei, que para isso é que lhe pagam, agora vamos nós comer, mas a mulher não esteve de acordo, Primeiro, tens de ver o teu barco, só o conheces por fora, Que tal o encontraste, Há algumas bainhas das velas que estão a precisar de reforço, Desceste ao porão, encontraste água aberta, No fundo vê-se alguma, de mistura com o lastro, mas isso parece que é próprio, faz bem ao barco, Como foi que aprendeste essas coisas, Assim, Assim como, Como tu, quando disseste ao capitão do porto que aprenderias a navegar no mar, Ainda não estamos no mar, Mas já estamos na água, Sempre tive a idéia de que para a navegação só há dois mestres verdadeiros, um que é o mar, o outro que é o barco, E o céu, estás a esquecer-te do céu, Sim, claro, o céu, Os ventos, As nuvens, O céu, Sim, o céu.
Em menos de um quarto de hora tinham acabado a volta pelo barco, uma caravela, mesmo transformada, não dá para grandes passeios. É bonita, disse o homem, mas se eu não conseguir arranjar tripulantes suficientes para a manobra, terei de ir dizer ao rei que já não a quero, Perdes o ânimo logo à primeira contrariedade, A primeira contrariedade foi estar à espera do rei três dias, e não desisti, Se não encontrares marinheiros que queiram vir, cá nos arranjaremos os dois, Estás doida, duas pessoas sozinhas não seriam capazes de governar um barco destes, eu teria de estar sempre ao leme, e tu, nem vale a pena estar a explicar-te, é uma loucura, Depois veremos, agora vamos mas é comer. Subiram para o castelo de popa, o homem ainda a protestar contra o que chamara loucura, e, ali, a mulher da limpeza abriu o farnel que ele tinha trazido, um pão, queijo duro, de cabra, azeitonas, uma garrafa de vinho. A lua já estava meio palmo sobre o mar, as sombras da verga e do mastro grande vieram deitar-se-lhes aos pés. É realmente bonita a nossa caravela, disse a mulher, e emendou logo, A tua, a tua caravela, Desconfio que não o será por muito tempo, Navegues ou não navegues com ela, é tua, deu-ta o rei, Pedi-lha para ir procurar uma ilha desconhecida, Mas estas coisas não se fazem do pé para a mão, levam o seu tempo, já o meu avô dizia que quem vai ao mar avia-se em terra, e mais não era ele marinheiro, Sem tripulantes não poderemos navegar, Já o tinhas dito, E há que abastecer o barco das mil coisas necessárias a uma viagem como esta, que não se sabe aonde nos levará, Evidentemente, e depois teremos de esperar que seja a boa estação, e sair com a boa maré, e vir gente ao cais a desejar-nos boa viagem, Estás a rir-te de mim, Nunca me riria de quem me fez sair pela porta das decisões, Desculpa-me, E não tornarei a passar por ela, suceda o que suceder. O luar iluminava em cheio a cara da mulher da limpeza, É bonita, realmente é bonita, pensou o homem, que desta vez não estava a referir-se à caravela. A mulher, essa, não pensou nada, devia ter pensado tudo durante aqueles três dias, quando entreabria de vez em quando a porta para ver se aquele ainda continuava lá fora, à espera. Não sobrou migalha de pão ou de queijo, nem gota de vinho, os caroços das azeitonas foram atirados para a água, o chão está tão limpo como ficara quando a mulher da limpeza lhe passou por cima o último esfregão. A sereia de um paquete que saía para o mar soltou um ronco potente, como deviam ter sido os do leviatã, e a mulher disse, Quando for a nossa vez faremos menos barulho. Apesar de estarem no interior da doca, a água ondulou um pouco à passagem do paquete, e o homem disse, Mas baloiçaremos muito mais. Riram os dois, depois ficaram calados, passado um bocado um deles opinou que o melhor seria irem dormir, Não é que eu tenha muito sono, e o outro concordou, Nem eu, depois calaram-se outra vez, a lua subiu e continuou a subir, em certa altura a mulher disse, Há beliches lá em baixo, o homem disse, Sim, e foi então que se levantaram, que desceram à coberta, aí a mulher disse, Até amanhã, eu vou para este lado, e o homem respondeu, E eu vou para este, até amanhã, não disseram bombordo nem estibordo, decerto por estarem ainda a praticar na arte. A mulher voltou atrás, Tinha-me esquecido, tirou do bolso do avental dois cotos de vela, Encontrei-os quando andava a limpar, o que não tenho é fósforos, Eu tenho, disse o homem. Ela segurou as velas, uma em cada mão, ele acendeu um fósforo, depois, abrigando a chama sob a cúpula dos dedos curvados, levou-a com todo o cuidado aos velhos pavios, a luz pegou, cresceu lentamente como faz o luar, banhou a cara da mulher da limpeza, nem seria preciso dizer o que ele pensou, É bonita, mas o que ela pensou, sim, Vê-se bem que só tem olhos para a ilha desconhecida, aqui está como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo ao princípio. Ela entregou-lhe uma vela, disse, Até amanhã, dorme bem, ele quis dizer o mesmo doutra maneira, Que tenhas sonhos felizes, foi a frase que lhe saiu, daqui a pouco, quando lá estiver em baixo, deitado no seu beliche, vir-lhe-ão à ideia outras frases, mais espirituosas, sobretudo mais insinuantes, como se espera que sejam as de um homem quando está a sós com uma mulher. Perguntava-se se já dormiria, se teria tardado a entrar no sono, depois imaginou que andava à procura dela e não a encontrava em nenhum sítio, que estavam perdidos os dois num barco enorme, o sonho é um prestidigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa ás pessoas, e elas estão juntas, reúne-as, e quase não se vêem uma à outra, a mulher dorme a poucos metros e ele não soube como alcançá-la, quando é tão fácil ir de bombordo a estibordo.
Tinha-lhe desejado felizes sonhos, mas foi ele quem levou toda a noite a sonhar. Sonhou que a sua caravela ia no mar alto, com as três velas triangulares gloriosamente enfunadas, abrindo caminho sobre as ondas, enquanto ele manejava a roda do leme e a tripulação descansava à sombra. Não percebia como podiam ali estar os marinheiros que no porto e na cidade se tinham recusado a embarcar com ele para ir à procura da ilha desconhecida, provavelmente arrependeram-se da grosseira ironia com que o haviam tratado. Via animais espalhados pela coberta, patos, coelhos, galinhas, o habitual da criação doméstica, debicando os grãos de milho ou roendo as folhas de couve que um marinheiro lhes atirava, não se lembrava de quando os tinha trazido para o barco, fosse como fosse era natural que ali estivessem, imaginemos que a ilha desconhecida é, como tantas vezes o foi no passado, uma ilha deserta, o melhor será jogar pelo seguro, todos sabemos que abrir a porta da coelheira e agarrar um coelho pelas orelhas sempre foi mais fácil do que persegui-lo por montes e vales. Do fundo do porão veio agora um coro de relinchos de cavalos, de mugidos de bois, de zurros de asnos, as vozes dos nobres animais necessários para o trabalho pesado, e como foi que vieram eles, como podem estar numa caravela onde a tripulação humana mal cabe, de súbito o vento deu uma guinada, a vela maior bateu e ondulou, por trás dela estava o que antes não se vira, um grupo de mulheres que mesmo sem as contar se adivinha serem tantas quantos os marinheiros, ocupam-se nas suas coisas de mulheres, ainda não chegou o tempo de se ocuparem doutras, está claro que isto só pode ser um sonho, na vida real nunca se viajou assim. O homem do leme buscou com os olhos a mulher da limpeza e não a viu, Talvez esteja no beliche de estibordo, a descansar da lavagem da coberta, pensou, mas foi um pensar fingido, porque ele bem sabe, embora também não saiba como o sabe, que ela à última hora não quis vir, que saltou para o cais, dizendo de lá, Adeus, adeus, já que só tens olhos para a ilha desconhecida, vou-me embora, e não era verdade, agora mesmo andam os olhos dele a procurá-la e não a encontram. Neste momento o céu cobriu-se e começou a chover, e, tendo chovido, principiaram a brotar inúmeras plantas das fileiras de sacos de terra alinhadas ao longo da amurada, não estão ali porque se suspeite que não haja terra bastante na ilha desconhecida, mas porque assim se ganhará tempo, no dia em que lá chegarmos só teremos que transplantar as árvores de fruto, semear os grãos das pequenas searas que vão amadurecer aqui, enfeitar os canteiros com as flores que desabrocharão destes botões. O homem do leme pergunta aos marinheiros que descansam na coberta se avistam alguma ilha desabitada, e eles respondem que não vêem nem de umas nem das outras, mas que estão a pensar em desembarcar na primeira terra povoada que lhes apareça, desde que haja lá um porto onde fundear, uma taberna onde beber e uma cama onde folgar, que aqui não se pode, com toda esta gente junta. E a ilha desconhecida, perguntou o homem do leme, A ilha desconhecida é coisa que não existe, não passa duma ideia da tua cabeça, os geógrafos do rei foram ver nos mapas e declararam que ilhas por conhecer é coisa que se acabou desde há muito tempo, Devíeis ter ficado na cidade, em lugar de vir atrapalhar-me a navegação, Andávamos à procura de um sítio melhor para viver e resolvemos aproveitar a tua viagem, Não sois marinheiros, Nunca o fomos, Sozinho, não serei capaz de governar o barco, Pensasses nisso antes de ir pedi-lo ao rei, o mar não ensina a navegar. Então o homem do leme viu uma terra ao longe e quis passar adiante, fazer de conta que ela era a miragem de uma outra terra, uma imagem que tivesse vindo do outro lado do mundo pelo espaço, mas os homens que nunca haviam sido marinheiros protestaram, disseram que ali mesmo é que queriam desembarcar, Esta é uma ilha do mapa, gritaram, matar-te-emos se não nos levares lá. Então, por si mesma, a caravela virou a proa em direcção à terra, entrou no porto e foi encostar à muralha da doca, Podeis ir-vos, disse o homem do leme, acto contínuo saíram em correnteza, primeiro as mulheres, depois os homens, mas não foram sozinhos, levaram com eles os patos, os coelhos e as galinhas, levaram os bois, os burros e os cavalos, e até as gaivotas, uma após outra, levantaram voo e se foram do barco transportando no bico os seus gaivotinhos, proeza que não tinha sido cometida antes, mas há sempre uma vez. O homem do leme assistiu à debandada em silêncio, não fez nada para reter os que o abandonavam, ao menos tinham-no deixado com as árvores, os trigos e as flores, com as trepadeiras que se enrolavam nos mastros e pendiam da amurada como festões. Por causa do atropelo da saída haviam-se rompido e derramado os sacos de terra, de modo que a coberta era toda ela como um campo lavrado e semeado, só falta que venha um pouco mais de chuva para que seja um bom ano agrícola. Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma."

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Amor de dois (28/07/97)


Amor de dois
amor demais.
Dê mais amor,
do tamanho de um dia.
Nem tão grande talvez.
Talvez nem amor.

Amor de dois...
segundos,
dois minutos.
Eternidades de momentos.
Onde olhos desejam
sem tempo para sonhos.

Paixão de uns,
perda de outros.
Foram-se tantos
dois segundos de amor
que no fim se foram
tão rápido quanto vieram.

Amor que não se explica.
Se bem que nenhum amor se explica.
Amor de dois nem se aceita.
Imposto depois deposto
e que deixa na boca um gosto de saudade
e que faz surgir um vazio onde nunca se imaginava poder ter.

Dois segundos de amor
é todo o amor necessário
para justificar a falta de razão
de uma vida inteira.
Até mesmo a falta de amor...