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sexta-feira, 24 de junho de 2011

A queda


Apesar do sol forte, já alto no céu azul de poucas nuvens, a ausência completa de pessoas na rua denunciava que aquele seria um dia frio. Ele abriu a janela do quarto e parou por instantes, admirando a paisagem. Era um dia muito bonito de inverno. O vento que entrou congelou todo o quarto. Ele, nu, sentia prazer naquela sensação de mudança de temperatura. Já eram nove horas. Ele já estava atrasado. Mas pensou que, já que iria desperdiçar aquele lindo no escritório, poderia se dar ao luxo de chegar atrasado uma horinha apenas. Acendeu um cigarro e apoiou-se na janela. A vista daquele apartamento era deslumbrante. Do alto daquele décimo quarto andar, sem nada a sua frente, via uma selva de pedras por quilômetros que, àquela distância, lhe dava paz.

O vento não era forte, mas, de tão frio, parecia congelar a alma, os pelos, as paredes, o vidro e o mármore no qual apoiava seus braços, enquanto fumava seu cigarro. Era um vento silencioso e afiado e parecia entrar por dentro dos ossos. E, naquela manhã bonita, essa sensação era boa. Estava nu, mas se sentia, naquele frio mais pelado do que nunca. Era como ser o vento ultrapassasse toda a imagem que ele tinha de si e o abraço. Um abraço que era gelado e ao mesmo tempo era o abraço mais verdadeiro e profundo que recebia.

Vestia apenas um cigarro, que, no durar dessa sensação, era somente cinzas. Vestia também lágrimas, poucas, que corriam delicadamente sobre seu rosto, como um carinho, uma gentileza. E não eram lágrimas tristes. Apesar de chorar, sentia-se inexplicavelmente feliz. A mente estava vazia e sem perceber, acendeu outro cigarro. A fumaça dançava à sua frente como uma bailarina, doce e precisa, num ritmo lento e preciso. E estava ele, agora, sorrindo, de pé sobre a janela, para poder sentir no corpo e na alma toda aquela felicidade. Era ele, naquele momento, senhor do seu mundo, o senhor de tudo e, ao mesmo tempo, tão pequeno, tão insignificante na beleza do mundo. Admirava o que via e sentia e deixou-se dominar por essa admiração. Era, com ela, nela, poderoso.

Sem saber porque, pulou. Seu corpo caiu lento, quase parando. O vento continuava frio, mas sua mente agora era tomada por imagens da sua vida. Os andares passavam em câmera lenta, quase parando no ar.

Lembrou das cidades que morou, das casas que teve. Desde sua infância, sua vida sempre foi mudar. Queria um canto, mas sua inquietude, ou a inquietude da sua vida, estava sempre o deslocando para um novo lugar. Lembrou da casa de chão de barro, sua primeira memória, que já era da sua terceira casa, aos dois anos de idade. Lembrou dos brinquedos quebrados, mas que eram seus brinquedos e de como era bom ter qualquer brinquedo. Lembrou do jardim e do quintal que não tinha fim, com suas árvores e sombras e do barulho de água do rio que devia passar ali perto. Lembrou da época em que dormia com sua mãe, pois não havia camas, ou quartos, suficientes para ele ter seu próprio espaço. As imagens vinham claras, nítidas, com detalhes que não se lembrava de ter guardado. Flores nos vasos, paredes descascadas, os tons de verdes no quintal. Eram detalhes e ele parecia perder horas conhecendo, de novo, aquele lugar. Lembrou da casa da avó e de como era difícil morar lá, da casa dos primos e de como era ou muito bom ou muito ruim morar lá, dependendo se os primos brincavam ou batiam nele, caçula que era. Lembrou da primeira televisão, preto e branco, numa casa alugada e de móveis alugados. Lembrou da primeira vez que andou de bicicleta, sem rodinhas, na casa do tio. Lembrou de tantas coisas boas durante aquele primeiro andar que caiu. Lembrou do primeiro beijo, do primeiro fora, da primeira trepada. Lembrou do último beijo, do último fora, da última trepada. Se esforçou para lembrar do que tinha acontecido no meio e riu, imaginando que teria que ter pulado de um prédio de 1000 andares para poder repassar a sua vida inteira. Lembrou do primeiro emprego, da primeira demissão, lembrou de amigos que queria ter tido por mais tempo, dos amigos que tinha e que não via fazia tempo. Lembrou e procurou, nessa lembrança, dar um abraço em cada um deles. Lembrou do pai e da mãe e da única vez que os viu juntos. Lembrou das suas vitórias e suas derrotas. Lembrou de sua vida inteira, ou pelo menos daquilo que lembrou de lembrar. E, caindo, sorria. Sabia que aquela vida era cheia de coisas, cheia de experiências, boas e ruins, mas que, no saldo, era boa, muito boa.

E continuava a cair, lentamente, calmamente, com se nem caindo estivesse. Chegou a cansar-se de suas lembranças. Queria de volta a sensação da janela, há pouco, onde não havia nada em sua mente, exceto a felicidade inexplicável que sentia em não sentir nada. Um vazio que não era oco, ao contrário, o preenchia por completo. Sentiu de novo em seus ossos aquele vento frio e sua mente esvaziando. A felicidade o preenchia e, sem saber porque, percebeu que não caia e, sim, voava. E, como uma bolinha sabão, uma pluma, flutuava nos braços do vento, que, como um pai, o levava no colo. Estava no céu e de lá a vista era ainda mais bonita do que a da janela do seu quarto.

Acendeu um cigarro novamente. Enquanto tragava, fechou os olhos. Não tinha o controle de onde ia, de onde estava, era levado e queria sentir isso na escuridão. Ficou de olhos fechados por algum tempo, não soube o quanto e quando abriu, estava em sua cama, nu, com o cigarro acesso nas mãos. Eram 9:00h, ele já estava atrasado, mas decidiu não ir trabalhar. Não naquele dia, nem no seguinte. E estava imensamente feliz sem saber porque... Estava frio, com um vento gostoso.

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