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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Gritos e Silêncios

Olhava fixamente para o espelho. Era um espelho de corpo inteiro. Era um espelho liso e grande em uma pequena sala quase vazia e que estava ali para dar a impressão de um espaço maior. Olhava intrigado para seus movimentos invertidos. Olhava fixamente para o espelho. Olhava-se, olhos nos olhos, e seus olhos, verdes escuro, estavam vermelhos. Queria não mais beber. E queria nunca mais chorar. 

Fazia três meses que bebia e chorava, diariamente. Fazia três meses que não saia de casa, exceto para beber e para chorar. Comer, eventualmente. Fazia três meses que matara sua esposa. Fora um acidente. Sim, houve um briga, sim, eles discutiram, mas ele só queria que ela parasse de gritar. Gritar com ele. Que ao menos Lavínia gritasse com as paredes, com as plantas, com outros, com o espelho. Mas não com ele. Ele não agüentava mais seus gritos. Lavínia gritava com ele fazia um tempo e ele sempre pedia para ela parar. Dizia que ela podia dizer o que quisesse, que podia lhe xingar, lhe maldizer, lhe amaldiçoar, mas, gritar, por favor, ele não agüentava. E, naquele dia, três meses atrás, os gritos dela lhe pareceram insuportáveis. Ele só queria que ela se calasse.

Ele olhava seu corpo pelo espelho. Ele costumava ser grande, corpulento, alto, largo, mas o que ele via era a imagem de um flagelo, um homem pequeno, sujo, sórdido, de uma feiúra obscena. Tinha as mãos grandes, largas, cheia de veias e pequenas cicatrizes, marcas. Tinha dedos grossos. Três dias depois que a matara, as marcas destes dedos eram como duas luvas pretas no pescoço de Lavínia. Pensou apertar seu pescoço com a mesma força do que quando faziam sexo e ele a deixava sem ar, fazendo-a gozar logo assim que a soltava. Era comum aos dois a tal da asfixia erótica. Era raro fazê-la perder a consciência enquanto transavam, mas naquele dia talvez, ele não lembra, talvez ele tenha apertado um pouco mais. Ele não lembra. 

Ele que assim que pegou no pescoço de Lavínia, ela parou de gritar. Fez um silêncio que há muito não ouvia. Um silêncio que lhe acompanha até hoje. Um som de paz. Ele lembra que seus olhos verdes ficaram abertos durante todo aquele momento. Não piscaram nenhuma vez. Eram lindos seus olhos verdes. Duas piscinas. Olhos verde mar, mais claros que os seus. Era difícil não ser hipnotizado por aqueles olhos. E naquele silêncio, era lindo vê-los. Ele apertou o pescoço de Lavínia achando-a a mais linda das mulheres. Como a amava. Naquele silencio e paz, diante de tanta beleza, ele teve a certeza de que a amava e de que nunca havia amado tanto uma pessoa. Era ali, prestes a se tornar só seu corpo, a mais belas das mulheres. Ela era um anjo. E ele queria amá-la, assim, angelicamente, para sempre. Naquele silêncio e paz, diante de um anjo, ele estava feliz.

Só percebeu que a matara quando aqueles olhos lindos e verdes perderam o brilho, ganharam uma tonalidade cinza. Soltou seu pescoço com dores na mão, de tanto tempo, não sabe o quanto, contemplando os olhos da esposa e apreciando o silêncio. Ele não a queria morta, mas seu primeiro pensamento era de que nunca a vira tão bonita. 

Lavínia era uma mulher vil, oportunista, maquiavélica e linda. Era mais linda que todas as mulheres e era também a mais sedutora delas. Quando ele já não a servia, passou a destratá-lo e, pior, a gritar com ele. Gritava quando brigava, gritava quando falava, gritava quando sorria, gritava até quando dormia. A todo momento, ela gritava com ele. Se havia algo que dava prazer em Lavínia nos sues últimos tempos, era gritar com ele. Ela gritava e em seguida ria. Caia na gargalhada ao vê-lo desesperado e incomodado com seus gritos. Por muito ele aturou os destratos, não se importava com os xingamentos, mas os gritos ele nunca suportou. Ele sempre pedia a ela para parar e ela nunca parava. Até que parou para sempre. Mas mesmo vil, Lavínia não merecia uma morte assim.

Seu corpo foi jogado ao mar quase uma semana depois de sua morte. O álibi que ele dera à polícia era fraco, mas a policia não suspeitou dele. A família dela não acredita no desaparecimento e vê o isolamento do marido como uma profunda depressão pela perda da mulher. Eles sabem que ele a amava muito e que nunca a mataria. 

Mas ele a matou e chora todo dia pela sua morte. E agora olha para o espelho, vendo a figura decrépita que se tornou. A imagem refletida no espelho já não era a sua. E a imagem do espelho já não era mesmo. A imagem do espelho ria. De inicio, ria de canto de boca, um pequeno sorriso, que se transformou lentamente em um riso acido, seguido por um riso histérico. Histérico e satisfeito. A imagem a sua frente já não era sua. Seu reflexo era forte como sempre fora. E ria com uma satisfação primitiva e gutural, um riso alto. Ria com os olhos vermelhos, vivos, com uma gargalhada frenética a mostrar todos os dentes. E os dentes eram grandes, a boca era grande, era, a imagem histérica de si, grande e assustador.
Ele, que olhava a tudo com espanto, teve medo da sua imagem. Aquele homem que ria e o assustava era o mesmo que não agüentou ser maltratado pela a esposa. Era ele, a imagem e não ele, quem via, o assassino. Ele disse, assustado e quase sem voz: “Assassino...”

E a imagem, sem parar de rir, lhe respondeu: “Eu te libertei daquela vagabunda! Você é livre! E agora eu quero viver!!”

E ele então deu um soco no espelho, quebrando-o em pedaços que caíram ao chão. Pedaços que ainda refletiam sua imagem e essa imagem, estilhaçada, gargalhava ainda mais, como se o som dos mil pedaços se amplificasse por mil vezes. E a imagem do espelho quebrado, entre gargalhadas e risos, começou a falar “O assassino é você, o assassino é você”.

E começou falando baixinho, bem baixinho e foi aumentando a voz, pouco a pouco. Ele, o homem, pisoteava os cacos de vidro no espelho, mas, quanto mais pedaços ele criava, mais altas eram as gargalhadas e as palavras que ele falava. E as palavras, altas, agora eram gritos, gritos, gritos...

E ele, quase já em prantos, suplicou “Não grite comigo, por favor, não grite comigo”, no que os gritos ganharam mais força... “O assassino é você!!! O assassino é você!!!”. 

Com um pedaço pontiagudo de vidro em cada mão, ele lentamente e com toda sua força golpeou os próprios ouvidos, alternando os lados, uma, duas, três, quatro vezes e mais, até cair no chão. Fez-se novamente o silencio e a paz. E era a maior paz do mundo. E naquele silencio ele sorriu e achou bonito o vermelho de sue sangue refletido em mil pedaços. Em um certo momento, sentiu-se cansado e fechou os olhos.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Série Diálogos - "A gente se acostuma..."


Ela: Assisti ontem o Abujamra recitando Marina Colasanti.  A gente se acostuma... eu não quero me acostumar.

Eu:  Tem coisas que a gente pode se acostumar, tem coisas que não... Não trabalho com regras.

Ela: Isso é bom. Ou melhor, seria bom, se fosse verdade. Regras são para serem quebradas! Mas não acredito em você. Acho que você é uma fraude. Você trabalha com regras, regras diferentes, suas regras, mas eu gosto disso. E gosto das falsas verdades que você fala. Você é cheio das falsas verdades. Elas não são mentiras, mas são falsas verdades. E eu não quero me acostumar, já disse.

Eu: Hum... Pode ser. Normalmente eu ia ficar puto ouvindo isso, mas vindo de você, agora, não tenho como dizer que você não esteja certa.

Ela: Eu sei. Eu sempre estou. Você sabe...

Eu: Falando em verdade, a verdade é que eu acho um elogio quando você percebe que as falsas verdades que eu digo não são mentira. Só os inteligentes, e são poucos, percebem isso. Eu sou uma fraude e me orgulho disso. Sempre achei maneiro cagar regra sobre coisas que eu realmente não me importo. 

Ela: Vcoê fala pra caralho e não diz nada... 

Eu: Mas é... O mundo inteiro é uma mentira e eu me considero uma mentira sincera.  Ou será que eu estou mentindo pra mim? A verdade é que eu só não gosto do generalismo. Ainda mais quando sou eu que faço, mas o mundo inteiro é uma mentira. Mas, se é pra mentir, e todo mundo mente, aprendi isso vendo House, que seja sobre coisas diferentes.Um mentira inédita demora mais a ser descoberta. 

Ela: Ou não... Fodam-se as suas mentiras. Você fala demais. É prolixo demais. Tem gente que te acha chato demais... As vezes eu acho... Mas as vezes é bom entrar nessas viagens suas, principalmente para as pessoinhas de cabeça vazia... Mas esse seu blablabla não levam ninguém a lugar nenhum. Você sabe disso, né?

Eu: Não leva? Depende de aonde você quer ir. Tem uma ou outra que eu levo. Mas, não tenho a intenção de levar ninguém a nenhum lugar...

Ela: To com uma vontade imensa de viajar... adoro aquela sensação de sair, de conhecer o novo, de não saber o que pode acontecer, mas que venha o que tiver que vir. Vontade de praia do nordeste, moqueca de peixe, rede na sombra do coqueiro e água de coco gelada.

Eu: Viaje. Viajar é bom. Mas isso assim parece uma fuga. Você está fugindo?

Ela: Não sei. Você está?

Eu: Talvez. Fugir é diferente de buscar, né? Mas as vezes pode ser meio parecido. Achava que eu estava fugindo de algumas coisas, mas de vez em quando me percebo buscando outras. E tem vezes que eu me vejo buscando algumas coisas quando na verdade estou fugindo de outras. Tenho dificuldade de saber onde estou. E acho um saco ficar me analisando de instante em instante... Pra isso eu pago a análise...

Ela: Eu queria viajar. Preciso de novos ares. Buscar algo ou fugir disso aqui. Estou cansada...

Eu: Viajar é também uma expressão de solidão. Nada mais solitário que um viajante...

Ela: É verdade, mas também depende da viajem. Viajar acompanhado é bom demais! Eu gosto.

Eu: Mesmo viajar \acompanhado. Há, quando a gente muda de cenário de fundo, muda de lugar, fica longe de casa, uma solidão que nos acompanha...

Ela: Ah, mas essa solidão nos acompanha do nascimento à morte, viajando ou não.

Eu: Sim, mas uma certa dose de rotina nos distrai dessa solidão. A mesma rotina que, em outras questões, nos sufoca. É preciso, sempre e para tudo, buscar o equilibrio. Mas, definir e saber onde está esse equilibrio é que são elas. O equilibrio é uma utopia.

Ela: Você e suas falsas verdades... Chato. Só Buda achou o equilibrio

Eu: Cada um tem o seu. Ou ninguém o tem... Buda sempre me lmebra bunda. O equilibrio da bunda é o cu? Pronto, acabou a seriedade. Deixa eu ver sua bunda? Gosto dela. Ela gosta de mim.

Ela: Gosto de você gostar da minha bunda. E gosto de pensar que não é só dela, mesmo não tendo muita certeza disso. Mas, das minhas preocupações agora, essa é a menor. E, sei lá como, eu até gosto de você. Gosto até da sua seriedade equilibrada com essas besteiras, se não tudo fica muito pesado e chato. Alias, você é chato e é pesado e eu até gosto de você. Isso é impressionante. Acho que sou eu que preciso de terapia.

Eu: Acho que você precisa de sexo. Mais um pouquinho.

Ela: Sempre preciso. Tem vida em você ainda? Qualquer coisa eu me viro...

Eu: Quase. To me recuperando, mas já dá pra começar a brincar. Tem coisas que a gente se acostuma. Me manda o link do Abujamra?

Ela: Depois... Vê cá agora... Deixa de ser chato e para de falar. Você precisa aprender a calar a boca de vez em quando. Me come de novo?

Eu: Como. Mas você falou que não quer ser acostumar.

Ela: Falei? Não lembro. Me come?


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O dia seguinte.


(Não sei se devia avisar, mas essa é a continuação de "O dia não prometia nada, mas...")

Sábado. Acordei às 6:30h da manhã. Sempre tenho dificuldades em acordar cedo. Ou para levantar cedo. Acho que acordar, de verdade, requer que a mente e os reflexos estejam despertos. Não basta abrir os olhos.

Invariavelmente acordo as sete, às seis da manhã, mesmo com o despertador colocado para as oito. E entre o acordar e o levantar parece haver uma eternidade. São sempre infinitas as possibilidades. Possibilidades que giram em torno da fé plena que é possível dormir apenas mais cinco minutos. A fé é mais forte que a razão e as evidências. Mas a fé é tola também. E insistente. O corpo sempre pede mais cama, mas a mente se culpa e se tortura, não se entregando ao relaxamento, imprimindo ao corpo mais cansaço. Há um habito cruel nessa rotina da briga da mente com o corpo físico e sempre quem perde sou eu. Essa briga dura sempre mais que cinco minutos. Às vezes dura mais de duas horas. Às vezes se estende por todo o dia, principalmente pelas as manhãs de terça. Odeio terças feiras. Não sei por quê.

Mas era sábado, 6:30h da manhã e não havia motivo nenhum para estar acordado. Mas, no entanto, a mente completamente desperta decidiu ignorar os apelos do corpo por mais algumas horas de sono. Poderia ter dormido aquele dia inteiro.

Ao contrário do dia anterior, quando o céu doía de tanto azul, o céu daquele sábado estava estranhamente branco. Deitado na cama, eu olhava pela janela do quarto e o céu estava branco. Não se via as nuvens, ou melhor, o contorno das nuvens. As nuvens estavam lisas, fazendo do céu um tapete branco, completamente branco... E é difícil não prestar atenção em um céu tão estranho assim. E, acordado, mas não completamente desperto, eu via o dia clarear, com pensamento vazio, mas com resquícios daquilo que sobra dos sonhos... E pensando nos sonhos, me veio a imagem da mulher que eu encontrei no almoço, sexta, no MAM.

Tem horas em que é preciso exercitar a memória, senão, passado um tempo, o que a gente lembra é algo feito de poucos fragmentos de realidade, preenchido por toneladas de ilusão. A memória é sim uma ilha de edição. E, poxa, que delícia, que bom, nesse estágio letárgico, lembrar da mulher do MAM. A mulher que não tinha nome, ou melhor, que não havia dito o nome, é na minha cabeça a mulher do MAM. Tenho dúvidas se sonhei com ela naquela noite, mas certamente sonhei com ela naquele momento de briga com o despertar.

E ali, deitado na cama, olhando um céu estranhamente branco, eu lembrava aquele encontro mais que inusitado. Lembrava de detalhes, recapitulava as palavras que haviam sido ditas, gestos, imagens. Tentava reconstituir, palavra por palavra, o diálogo daquele jogo. É difícil esse exercício para uma pessoa como eu, que só tem memória afetiva, não tem memória dos fatos, apenas das sensações em torno dos fatos. Era, por isso, importante acordar e pensar naquele encontro. Para que aquela história tivesse mais realidade do que fantasia. Com o tempo, se aquele encontro com a mulher do MAM tivesse sido o único, certamente a história viraria apenas uma fantasia. Seria, de qualquer maneira, fantasia ou realidade, uma excelente história. E ali, deitado na cama, brincava de lembrar e de preencher com ilusões aquilo que eu não lembrava. E, nas lembranças, havia aquela mulher. Uma mulher espetacular. Linda, morena, sexy, livre, deliciosamente livre e com um sorriso largo. Não era preciso qualquer fantasia para melhorar a lembrança da imagem daquela mulher.

E assim se passou uma manhã de sábado. Eu deitado na cama olhando o céu branco que lentamente se desfazia, deixando aparecer azuis, pensando no encontro do dia anterior. Pensei se eu havia dito algo errado, se eu podia ter feito algo pra conseguir aquela mulher. Sim, certamente, mas não sabia o que. Mas talvez não, se lá. Era, e sempre será, uma dúvida. E quando o pensamento mudou das lembranças deliciosas daquele delicado encontro para uma angustia e cobrança sobre o que poderia ter sido feito de melhor, coincidentemente percebi que o céu estava totalmente azul e sem nuvens. Sem perceber, elas se foram. Era preciso aproveitar a beleza daquele dia. Sempre é preciso aproveitar os dias bonitos.

E assim foi. Corridinha nas Paineiras, banho de cano, água gelada, vista do Rio, caminhada reflexiva de volta ao carro, pernas cansadas, dia frio, com sol, mas lindo. O Rio é uma cidade que me mima. É impressionante como ele me trata bem. E, ainda assim, com todas as distrações do mundo, com todos os mimos, pernas cansadas e, naquele momento, fome, eu ainda pensava na mulher do MAM. Enquanto caminhava, em um esboço de roteirista, eu  planejava cenas de um eventual encontro, com direto a olhares, cenas, pausas e suspiros. Fazia tempos que eu não me sentia assim e, naquele momento, eu sentia-me mais seguro em fazer roteiro sobre utopias do que sobre situações reais. Mesmo tendo acontecido o encontro no dia anterior, eu sabia que era praticamente impossível encontrá-la novamente. E, além disso, dificilmente haveria, nesse segundo encontro, o impacto, a surpresa e as impressões marcantes ocorridas no dia anterior. A sorte não bate duas vezes na mesma porta. Ou não sempre.

Já eram quase uma da tarde quando o telefone tocou. Um amigo. Amigos são poucos. Não o via fazia uns oito meses, talvez quase um ano. Essa coisa de trabalho, de tempo, de família. Éramos quase vizinhos, mas as agendas não batiam. E era um dia livre, sem nada o que fazer. Um convite para almoçar. Em instantes, acordamos ir pra Santa. Eu estava ali do lado, ele estava perto, o dia estava lindo, mas o frio não nos convidava para uma praia.

Mineiro. Por muito tempo eu morei no Mineiro. Antes mesmo de ter morado em Santa. Casa é aquele lugar onde você se sente acolhido, protegido e livre. E ali, entre pasteis de feijão, turistas, a cumplicidade dos garçons, fotografias, enfeites, Original gelada e batida ‘afrodisíaca’ de gengibre, eu me sentia assim, acolhido. Mineiro sempre teve um lance de ser o sofá de casa... E foi lá, no Mineiro, naquele sábado lindo, céu azul de outono, que fui almoçar com *.

Sábado sempre tem aquela fila absurda no Mineiro. Todo dia tem feijoada, mas nem sempre os cariocas têm tempo, durante a semana, para se dedicar a uma feijoada.  Ainda mais a feijoada do Mineiro. Eu cheguei antes que *, coloquei meu nome na lista de espera, pedi uma Original e um copo. Fiquei na calçada observando as pessoas e nesse momento, mais do que antes, eu desejei a mulher do MAM. Eu olhava as pessoas em volta e não via, de fato, ninguém. Cheguei mesmo a fechar os olhos e a lembrar do cheiro e do sorriso largo daquela mulher. E, naquele momento, observando as pessoas sem vê-las, senti-me vulnerável e ao mesmo tempo são. Era tão obvio e fácil desejar uma ilusão e a mulher do MAM, mesmo tendo sido real naquele encontro, era uma ilusão. Nesse momento, eu respirei. Respirei de fazer força para expirar todo o ar do fundo dos meus pulmões, para em seguida enche-los com a mesma violência. E, com esforço, procurei pessoas para fixar a visão. Era preciso ver a realidade. E a realidade eram duas loiras, gringas, conversando ao meu lado, em um alemão fluente e incompreensível aos meus ouvidos. Não compreender uma palavra do que as pessoas estão falando, mesmo quando estão a poucos centímetros de você, faz parecer haver uma distância entre você e as pessoas. E eu, em busca de alguma realidade, me vi observando aquelas mulheres, loiras, gringas, reais e distantes. Observava-as como quem vê gazelas no zoológico, colado às grades, com misto de curiosidade e indiferença, com uma curiosidade quase cientifica. Não me importei de ser percebido e era quase impossível não ser, pois praticamente eu participava da conversa. Mas, mesmo reais, eram elas, as gringas, menos sedutoras do que o mar de possibilidades que era a fantasia da mulher do MAM. Era um dia bonito, mas era um dia estranho. O mundo estava estranho. Ou estava eu.

Fui salvo por *. Na hora que a situação que eu criara sozinho estava se tornando angustiante, * chegou. E de cara, percebeu que eu não estava bem. É uma sorte não ter que explicar certas angústias. Quando * chegou, me acalmei. E tomamos cerveja em pé por um tempo. E falamos amenidades. E de novo o dia estava  bonito de novo.

* era, ainda é, sempre será, um amigo irmão. Amizade daquelas que transcende tempo e distância. Mas, já disse, não o via há algum tempo e não sabia o que ele estava fazendo da vida. Tomamos umas quatro garrafas antes de conseguirmos uma mesa. E nessas quatro garrafas falamos de trabalho, de saúde, de viagens. Ele continuava com o mesmo emprego, mas estava procurando algo mais calmo, que lhe rendesse mais tempo livre. Havia feito uma cirurgia para uma lesão no ombro, causado por um tombo de moto. Ele estava planejando uma viagem para Bolívia. E eu escutava ele falar. As histórias que ele contava eram reais. Ao menos para ele, elas eram reais. Mas, pra mim, o que ela falava era ilusão. Era preciso imaginar as cenas, as situações, as possibilidades. Mas valia, pra mim, a distração.

Estávamos sentados em uma mesa colada à parede e eu estava de frente para a rua. Sem perceber o meu silêncio, continuava a falar. Eu continuava a ouvir, mas observava também as pessoas na rua. Era preciso distrair-me. E ele falou das mulheres com que havia saindo. Contou por auto que havia saído por um tempo com a irmã da minha ex mulher, mas que agora estava namorando. E mais, estava completamente alucinado com a mulher que conhecera em um encontro fantástico. E, eu, pegando esse gancho de encontros e cansado de tanto escutar, vomitei toda a minha ansiedade e desconforto. Interrompi a história de *, contando todos os detalhes, reais e inventados, do encontro com a mulher do MAM.

Descrevi o encontro, colocando agora em palavras todas as sensações e impressões que tive. E falei da minha surpresa, da minha falta de expectativa, da minha vulnerabilidade, do poder e da força da mulher livre que eu havia conhecido. Verbalizei fantasias de um segundo encontro, o que eu faria, o que eu não faria. Falei de estratégias para procurá-la e a certeza, que até então eu não tinha, de que eu ainda a encontraria de novo. E eu falei tudo isso sem a menor calma, lógica e ordem. E * me escutava, feliz e confuso, tentando se entender no caos do meu discurso. Do pouco que entendia, e não entendia quase nada do que eu falava, ele percebeu que eu estava feliz. E eu estava. Havia, depois de muito tempo, algo que me angustiava e isso me deixava feliz. Eu havia passado muito tempo indiferente ao mundo, nada me interessava, mas a angustia era um sinal de vida e isso me deixava feliz.

Falei tanto, por tanto tempo, que cansei. E rimos. Estávamos já na oitava garrafa de cerveja e na sexta dose de gengibre. Longe de estarmos bêbados, estávamos felizes. Cada um com seus motivos. E rimos. Era bom estar com um amigo naquela hora.  Era um dia muito bonito.

E, no meio daquele riso, pareceu-me que aquele dia bonito seria também meu dia de sorte. A mulher do MAM entrava lentamente no Mineiro. Perdi o ar. Olhei-a com olhos de câmera lenta e eu já não escutava nem mais um som das mesas vizinhas. Eu escutava apenas as batidas do meu coração. Ela vestia um sorriso largo, cabelos soltos, óculos escuros, grandes. Vestia também uma calça jeans justa, baixa, com uma blusa preta, duplamente generosa, por deixar a mostra uma cintura fina com barriga definida, numa pele dourada pelo sol, e pelo generoso decote que insinuava mais que mostrava e que, em mim, dava água na boca. Ela, nos meus olhos de câmera lenta, no alto de seus saltos vermelhos, movia com uma harmonia cinematográfica. Seus cabelos tinham um movimento que competiam com o de sua cintura e eu já não sabia para onde olhar.

Perdi todas as estratégias e idéias que havia imaginado. Eu estava chocado, surpreso, impressionado, maravilhado, admirado, arrebatado por aquela imagem. Eu estava sem ar. Não havia ar suficiente no mundo para mim.

E ela vinha na minha direção, sorriso largo e passos firmes e harmônicos. E eu, abestado, sorri de volta. Respirei e senti que, em instantes, já seria possível falar.
* se levantou. Eu também. Ele a e mulher do MAM cumprimentaram-se com um beijo singelo na boca. Ele me apresentou, “essa é Ana, minha namorada.”

E eu perdi o ar. De novo.

Ana. Palindromicamente Ana.

Sem tirar os óculos escuros, ela estendeu a mão, com seus braços longos, delicados e definidos, e era uma mão firme e disse “prazer”.

E eu pensei em todos os sentidos da palavra prazer, seus sinônimos, suas aplicações e possibilidades. E sem, ar, eu nada respondi.

Sentamos e * começou a falar, mas havia, ainda para mim, o maior silêncio do mundo. Via de canto de olho os movimentos dos lábios de *, mas eu só ouvia o silêncio dos meus pensamentos, tentando aterrissar e colocar de novo os pés no chão. Escutava, além, mais forte do que antes, as batidas do meu coração.

No que Ana, e a ela eu escutei claramente, fala ao garçom:
— Que vinho você tem?
— Não sei, vou ver, dona.
— Não vê, não, rapaz, me traz uma taça do que você tiver.
— Não trabalhamos com taças, dona.
— Então me traz uma garrafa, por favor.

E nisso acabou-me o ar, completamente, e nem às batidas do meu coração eu escutava mais.

Foi um dia bonito aquele, mas estranho. Muito estranho. Naquele dia eu voltei a fumar.

A sorte não bate duas vezes no mesmo lugar. Ou não sempre.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Playlist 1

Ouve isso.

Cheiro de mar


Ela acordou sem saber ao certo se ainda eram oito da noite ou se já eram cinco da manhã. Acordou sem querer acordar. Teve de novo um sonho daqueles que não sabia mais se era sonho. Acordou e ainda sonhava. Acordou cansada. Mais cansada do que fora dormir.

Era a primeira folga que tinha em um mês e estava entrando no terceiro dos quatro dias que iria ficar em casa. Estava mais cansada que antes. Havia se acostumado ao trabalho de madrugada, mas havia uma dívida de horas de sono que o corpo se recusava a pagar. Precisava e queria descansar. Acordou e ainda sonhava. Havia ido dormir para parar de pensar. Mas pensar era só o que fizera. Estava cansada.

Sonhava com um homem. Sonhava recorrentemente com um homem. O mesmo homem. Não sabia seu nome, nem seu rosto, nem nada, mas era uma figura constante em seus sonhos recentes. Sentia seu cheiro ao acordar e era como se ele estivesse estado dentro dela, como se ele a tivesse invadido cada milímetro de suas entranhas e deixado seu cheiro por lá. E ele cheirava a mar. Aquele misto de sal, areia, água, vento e sol, aquele cheiro de porra apodrecida, de sexo de ontem. Ela lembrava dele, sentia o cheiro de mar e lembrava de porra velha. Achava que tinha o mesmo cheiro de quando passava dias trancada no quarto, trepando, bebendo e fumando, sem comida e sem banho. Sim, houve épocas que se trancava no quarto com o namorado, com o amigo, com a amiga, com que fosse e só saia quando estava a beira da morte, esquálida e de pernas bambas. E o quarto ia acumulando um cheiro de suor e porra, de fluidos, que, depois de um tempo, lembrava cheiro de mar. E ela lembrava do homem do sonho apenas pelo cheiro de mar. Ou da sua porra velha... Tinha um tesão sem fim  naquele cheiro, ainda mais naquele homem sem nome e sem rosto. No dia anterior tinha sonhado com ele e pode jurar que, ao seu lado, a cama estava quente e úmida. Noutro dia, o sonho havia sido no banho. E sempre, sempre, lhe sobrava o cheiro de mar.

Precisava e queria descansar.  Mas acordou e ainda sonhava. E naquele acordar cansado, com tesão e cheiro de mar, tentava lembrar do sonho que acabara de ter. Como o travesseiro entre as pernas, lembrava das mãos daquele homem. Lembrava da aspereza do toque, da grossura dos dedos, das marcas e, principalmente, do tamanho. Eram mãos enormes. Seus dedos pareciam assustadoramente sexies. Dedos grossos, brutos. Respirava e apertava contra si o travesseiro.  O toque daquelas mãos a fazia suspirar. E suspirando, voltava àquele lugar que fica antes do sonho, depois do acordar. Àquele limbo onde não sabemos bem onde estamos, ou quando estamos... E assim, com as mãos grandes e ásperas, dedos grossos, que a faziam suspirar e apertar o travesseiro contra o meio de suas pernas, segurando as suas mãos, leves e delicadas, ela adentrou, cansada, aquele sonho acordado. Bebiam whisky, sem gelo, em um bar antigo do centro, e seus goles eram fortes e grandes e o whisky lhe descia a garganta como se fosse água. As mesas era pequenas, o bar quase vazio, muitas fotografias na parede, gente famosa nos retratos. Gente famosa e morta. Ela já havia estado lá. Só o copo de whisky destoava. Era um copo de vidro vagabundo, Aquele copo não era dali. Ela não via o rosto daquele homem, mas via cada detalhe daquele lugar e daquele corpo grande parado à sua frente. Sim, definitivamente, ela o conhecia, apesar de não o reconhecer. Ela tentava acompanhá-lo no whisky, mas ele bebia com uma sede de outros tempos. O copo se enchia sozinho, mas ela não via como. Ficou curiosa, mas ela não queria perder aquele homem de vista. Tinha a sensação que se desviasse mais uma vez o olhar para qualquer lugar, ele desapareceria. E assim, ficou, olhando-o beber e respirar.  Sua respiração era profunda, quase eqüina, bestial. Podia-se ouvir o ar entrando pelo seu nariz e dilatando seus pulmões. O peito estufava-se e era uma cena que a hipnotizava. E naquele sonho que não era sonho, não trocaram uma só palavra. Olhavam-se, ele sem rosto, seguravam-se as mãos e ele bebia.  Havia silêncio, tensão e tesão. A vontade dela era subir naquele homem grande, no meio daquele bar, tirar-lhe a roupa, sentir-lhe por dentro e deixar-se invadida por aquele cheiro de mar. Apertava o travesseiro, enquanto ele tomava mais um gole. Gozou.

Respirava ofegante e então entendeu. Não sabia porque, mas devia àquele homem no sonho. Olhava-o as mãos, os braços, o peito largo, as marcas e soube que lhe devia uma trepada. Não, não era apenas que ela queria, e sim, queria e queria muito, trepar com ele. Mas, por qualquer motivo, ela lhe devia isso. E ele apareceria em seus sonhos diariamente para, silenciosamente, lhe lembrar dessa dívida. Abriu os olhos e viu as paredes do quarto. Ainda era escuro. Talvez fosse oito da noite, talvez fosse cinco da manhã. Fechou os olhos e sem dificuldade voltava aquele bar. Estava lá parado o homem de mãos grandes e largas, copo vazio, sem rosto.  Ela levanta e no meio do bar e por baixo do vestido, tira a calcinha. Coloca-a dentro do copo. Era a forma dela dizer que queria pagar aquela dívida.

Abriu os olhos. Estava mais acordada que nunca. Foi à cozinha. Eram duas da manhã. Precisava dormir mais um pouco. Estava de folga e tinha que descansar, pois o trabalho, trabalho de merda, voltaria com todo gás em dois dias. Pegou o rivotril. Sete gotas deveriam bastar.  Sabe que não tem adiantado muito. Já teve tempo em que sete gotas bastavam. Precisa relaxar. Depois de gozar ela sempre acorda. Tem as pernas bambas e o corpo cansado. Serve-se de whisky. Puro. No copo de cristal, próprio pra isso. A mente está a mil. Fecha os olhos. Sente o cheiro do mar. Ou seria o cheiro de porra velha? Gosta dos dois e acha que os dois têm o mesmo cheiro. Queria que aquele homem lhe batesse à porta. Odeia dever a alguém. Ainda mais essa dívida.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Papo besteira I - Tortura no exame médico


Tá, vamos combinar. Ficar 12 horas em jejum e beber dois litros d’água horas antes do exame não é legal, né? Fica, nessas horas, comprovado que a bexiga controla o cérebro. Você não pensa direito, suas frases são curtas, seu foco está num lugar só: em segurar-se. Dai, como todo laboratório, como grande parte dos consultórios, do médicos, a bagaça atrasa e você fica pensando que podia ter esperado pra beber aquela água toda uma hora mais tarde. Ou duas. Mas, enfim, você já está lá, não quer esperar mais três semanas pra passar pelo mesmo sofrimento e, pensa, porra, não deve ser tão difícil segurar um xixi na bexiga, né? E vamos lá, firme e forte. “Seja macho!”, lembrei da voz do meu avô amazonense criado no Ceará. Com duas horas de atraso e já sentindo não só vontade de fazer xixi, mas também dor, você é finalmente chamado. A sua cara de desespero comove a enfermeira, a médica e até os outros pacientes. A dor causa solidariedade e esse é um fenômeno que eu nunca entendi. Sempre achei que devíamos, ou podíamos, ser solidários o tempo todo. Mas, enfim, você entra pra fazer o exame. O ar condicionado da salinha pequena parece ter sido recém instalado e ajustado para uns -25°C. É preciso tirar a camisa e abaixar a calça, o que faz o frio literalmente dar uma apertadinha, básica, na sua bexiga. É, meus amigos, seria mais interessante se eu dissesse que eu mijei nas calças, mas, enfim, uma única gotinha não pode ser considerada uma mijada.

O que aconteceu, passado esse sufoco todo, é que a médica, muito solicita e aparentemente solidária na minha dor, me pergunta porque eu estou fazendo um ultrassom de abdômen completo, no que eu, prontamente respondo, seguro, que a médica que me receitou o exame queria confirmar uma hérnia abdominal. Dai, o rosto da mulher se tornou ainda mais solidário, passando para uma cara visivelmente triste. Me espantei, pois achei que uma hérnia abdominal fosse sim um coisa bastante simples, e a cara dela era de que havia algo de errado. No que eu pergunto se aquilo é ruim ou se é uma besteira, ela me confirma que é uma besteira, mas que aquele exame, para o qual eu tive que beber litros d’água e que estava bastante atrasado, não servia para visualizar uma hérnia de parede (ela me corrigiu nessa hora). O exame que devia ter sido solicitado era um ultrassom de partes moles, que não precisa desse tratamento medieval e colocar uma pessoa sem comida, a base de muita água e sem poder aliviar-se. Ela me disse que iria fazer o exame solicitado e que eu teria que remarcar o exame. Porra.

Pense numa pessoa com ódio? Pensou? Agora multiplica por 10. Soma uma bexiga cheia e fome... Então, era eu.

Por sorte, as pessoas solidárias a quem tem dor, também o são com aqueles que são vitimas de erros. Pelo menos, aquela médica era. Deve ter contado minha cara de um dia de fúria e ela deve ter se assutado com isso também... E acabou que ela passou a maquinhinha uns três centímetros acima de onde era o "limite" entre um exame e outro. Me surpreendi que era aquela a diferença entre um exame e outro. Era por conta de três centímetros que eu teria que marcar um novo exame, voltar, demorar horas pra ser atendido de novo. Fiz a cara de agradecido, mas, quem me conhece sabe, não sou muito bom de disfarce e provavelmente meu ódio e indignação estavam transbordando. Só o meu xixi que não. Estava lá, na primeira fila, na porta da saída, na escada do ônibus, ali, pronto e esperando... Uma cutucada mais forte na bexiga e seria um desastre. Mas, já disse, deu tudo certo. E, como não podia acabar ruim a história, afinal, trabalhamos com sorte, a médica – e já não a considerava boa – descobriu, apesar do pedido errado da médica má, que não se tratava de uma hérnia de parede, e sim de um de apenas uma bolinha da de gordura inofensiva.

Pra coroar essa pequena felicidade, vem o momento sublime de aliviar-me por uns longos minutos. Sensação de eternidade e êxtase. Quase um orgasmo. Prazer divino.

Passada a tortura, ainda agradeci a médica, esquecendo toda a falta de estrutura do grande laboratório, o exame medieval, o erro da médica má e a “caridade” da mulher me “dar mais um exame . Impressionante como colocar o bode na sala é uma grande “solução”. Eu continuava com o que tinha, com a mesma dor e o mesmo incomodo. Estava sinceramente feliz de passar por esse procedimento de merda pra não ter merda nenhuma. O famoso bode.Um bode de bexiga aliviada.