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terça-feira, 16 de agosto de 2011

O dia não prometia nada, mas

O dia não prometia nada, mas era preciso crer que aquele céu azul de inverno não podia ser desperdiçado. Seria um pecado não contemplar um dia tão bonito. Fazia frio para os padrões cariocas, 20º eu diria, piorado ainda mais com o vento frio que insistia em achar as folgas e brechas do meu paletó. Sim, era sexta e eu estava de paletó... Era sexta-feira, meio de mês, hora do almoço, semana encerrada. Nada do que eu fizesse naquela hora iria mudar minhas pendências da segunda seguinte. Melhor era aproveitar o dia bonito, mas era preciso voltar após o almoço para cumprir a tabela da carga horária semanal. Escravidão dos tempos modernos...

Almoço no MAM, quase na beira da baia. Lugar bonito, de comida boa, já tinha ido duas ou três vezes, poucas mesas. Pessoas de vários tipos:  um casal, grávido, que parecia tenso com a chegada do bebê, mas, ao mesmo tempo, indiscutivelmente feliz por estarem almoçando juntos; uma mesa com quatro pessoas, dois homens, duas mulheres, mas com uma certa tensão no ar, visivelmente entre as duas mulheres, como se os dois homens estivessem, literalmente, sobrando; dois executivos, que, se não fosse pela falta de palavras e por comerem tão absortos em seus pratos, não me chamariam atenção. Outras pessoas, diversas pessoas, coadjuvantes, sem nada de especial a destacar... Pessoas, como eu, de terno, almoçando em uma sexta bonita. Pessoas, como eu, sorrindo. Cada um com seus motivos. A mim, me agradava o prazer intrínseco naquele dia. Não havia planos, não havia nada programado, era uma sexta feira e a agenda estava vazia, mas, já disse, aquele céu azul não podia ser desperdiçado.

No restaurante, havia apenas uma mesa no canto, vazia. Sentei-me, mas mantive-me de óculos escuros para admirar as cenas daquela situação. Pedi minha água ao garçom e já ia me levantando para fazer meu prato quando, de repente, ela chega.

Uma morena vestida de preto, casaco preto, de couro, fechado, blusa branca, saltos vermelhos, alta, linda, magra, sexy, gostosa. Óculos escuros e um sorriso largo que não parecia ter fim. Sem muito rodeios, pergunta numa voz rouca e sexy:

— Não tem mais lugar disponível. Eu tenho pressa. Posso me sentar aqui com você?

Mal escutei o que ela falou, apenas, vi o gesto e respondi sim com a cabeça. Percebi o silêncio no restaurante. De observador, passei a ser o observado. Eu observava incrédulo a surpresa que o dia me apresentava. Não disse seu nome, não perguntei. Eu não disse o meu e ela também não perguntou. Tirou lentamente o casaco e vestia apenas uma camiseta branca, regata, mostrando que além do sorriso, havia ali muito mais a mostrar. Ela não chegou a sentar e assim fomos à mesa do buffet fazer o prato juntos.

— A salada está bonita – disse ela, com a voz rouca que parecia querer me confundir. A carne não, tem muita gordura. Não entendo como as pessoas comem carne com salada. Um é frio, o outro é quente. Não está certo misturar.

Eu, que quase sempre só como carne com salada, misturados, fiz meu prato somente com alfaces e tomates. Fiquei em conflito por pensar se eu era assim tão influenciável ou se aquilo já era uma negociação e, como em todas as negociações, cedemos naquilo que nos é irrelevante.

Sentamos e pela primeira vez eu vi seus olhos. Não consegui identificar a cor. Um castanho claro, mas não muito definido. Uns riscos e manchas, uma coisa bonita, instigante. Eram, os olhos, aquilo que ela tinha de mais viva. Os olhos brilhavam. Não consegui vê-los muito, pois a dona daqueles olhos a tudo olhava, menos nos meus olhos. Até agora não sei se era uma inquietação ou uma fuga. Não sei, não importava, não importa...

Começamos a comer salada desinteressados na salada. O garçom perguntou a ela o que ela gostaria de beber.

— Que vinho você tem?
— Não sei, vou ver, dona.
— Não vê, não, rapaz, me traz uma taça do que você tiver.
— Não trabalhamos com taças, dona.
— Então me traz uma garrafa, por favor.

E, ao presenciar esse dialogo, me perturbei. E conversamos sobre superficialidades... “que dia lindo”, “a salada já foi melhor”, “a loja aqui do lado melhorou de qualidade”, coisas assim. E no meio das amenidades eu percebi que eu estava diante de uma mulher livre. Existem as mulheres que querem ser livres e existem as mulheres realmente livres. Aquela mulher sem nome na minha frente poderia se matar na minha frente por pura expressão de liberdade. Nada a prendia e nada a colocava ali. E eu me senti honrado por aquela presença inusitada.

Mas, no mesmo corpo onde nasce a honra, circula o sangue e fervem as emoções. Era, simplesmente, uma mulher linda sentada à minha frente. Como um presente. E no corpo onde circula o sangue e fervem as emoções, também circulam as emoções e ferve o sangue. E a isso se chama tesão. Dialogávamos como quem joga uma partida de tênis, frases rebatidas, idéias interrompidas, mas sem perder a direção. Jogo, jogo ativo, duro, jogo bom. Back to game – é boa a sensação de voltar ao jogo. E nas frases daquela mulher eu via um corpo todo voltado ao jogo, no movimento dos braços e cabelos, no sorrir, no calar. Querendo ganhar, conquistar, seduzir. Sedução é, sempre, o melhor do jogos. E eu sou jogador macaco velho nessa brincadeira. Tão macaco velho que sei a hora de sair, hora que não vai dar em nada. Também sei a hora em que é preciso insistir, que ainda há jogo. E, principalmente, sei quando estou jogando diante de alguém que joga melhor do que eu – o que era o caso – e que, nessa situação, perder é ganhar. É muito bom perder no jogo de seduzir pra alguém que joga melhor que você.

Aquela mulher que surgiu do nada era uma sedutora nata. Eu não tinha a menor chance, mas não podia deixar de brincar. O diálogo manteve-se cortes e discreto, apesar de toda tensão existente naquela conversa. Não eram usadas frases diretas, mas abusávamos das palavras com duplo sentido. Falávamos de tudo um pouco, ao mesmo tempo que falávamos de nada. Uma garrafa de vinho na hora do almoço e mais uma linda morena em um jogo de ganha-ganha realmente me deixou tonto. Já não a mais a escutava nem tinha noção do que eu respondia. Apenas a via na minha frente, vestida apenas com um salto alto e um sorriso largo. E aquela visão, mesmo na minha imaginação, era mais bonita que toda a beleza daquele dia.

— Preciso ir agora - disse ela muito de repente, quebrando o momento no qual eu terminava de despi-la do ultimo salto.

Pedi a conta e olhei o relógio. Eram quatro horas da tarde e voltar ao trabalho estava fora de cogitação. Minha idéia era despi-la de verdade e seus olhos pareciam implorar por isso.

— Vem comigo? - perguntei.
— É complicado - respondeu ela com um sorriso que discordava das suas palavras.

Vestiu o casaco virou as costas e saiu andando, passos firmes e decididos, em direção à praia, contra o vento frio, com os cabelos esvoaçantes. Olhou duas vezes para trás. A cena era linda de se ver naquele dia azul. Não fui atras. Sabia que não era pra ir, apesar da minha vontade enorme de ir.

Foi uma sexta diferente. Era um dia que não prometia nada. Justamente nesses dias é que nos surpreendemos. Uma presença inusitada, um vinho inesperado, um jogo bem jogado. Assim como veio, a bela mulher se foi. Deixou sua marca, levou a minha, gerou-se uma dívida, uma promessa não explicita, uma certeza de que, sim, será bom.

Tenho almoçado com freqüência no MAM. Mas os dias não estão tão belos quanto aquela sexta feira e não há sinal da mulher sem nome. Mas é certo que, cedo ou tarde, ela irá aparecer para brincar de me seduzir e cumprir a promessa que não foi feita. Um dia, o dia chega...


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