Olhava fixamente para o espelho. Era um espelho de corpo inteiro. Era um
espelho liso e grande em uma pequena sala quase vazia e que estava ali para dar
a impressão de um espaço maior. Olhava intrigado para seus movimentos
invertidos. Olhava fixamente para o espelho. Olhava-se, olhos nos olhos, e seus
olhos, verdes escuro, estavam vermelhos. Queria não mais beber. E queria nunca
mais chorar.
Fazia três meses que bebia e chorava, diariamente. Fazia três meses que não
saia de casa, exceto para beber e para chorar. Comer, eventualmente. Fazia três
meses que matara sua esposa. Fora um acidente. Sim, houve um briga, sim, eles
discutiram, mas ele só queria que ela parasse de gritar. Gritar com ele. Que ao
menos Lavínia gritasse com as paredes, com as plantas, com outros, com o
espelho. Mas não com ele. Ele não agüentava mais seus gritos. Lavínia gritava
com ele fazia um tempo e ele sempre pedia para ela parar. Dizia que ela podia
dizer o que quisesse, que podia lhe xingar, lhe maldizer, lhe amaldiçoar, mas,
gritar, por favor, ele não agüentava. E, naquele dia, três meses atrás, os
gritos dela lhe pareceram insuportáveis. Ele só queria que ela se calasse.
Ele olhava seu corpo pelo espelho. Ele costumava ser grande, corpulento,
alto, largo, mas o que ele via era a imagem de um flagelo, um homem pequeno,
sujo, sórdido, de uma feiúra obscena. Tinha as mãos grandes, largas, cheia de
veias e pequenas cicatrizes, marcas. Tinha dedos grossos. Três dias depois que
a matara, as marcas destes dedos eram como duas luvas pretas no pescoço de Lavínia.
Pensou apertar seu pescoço com a mesma força do que quando faziam sexo e ele a
deixava sem ar, fazendo-a gozar logo assim que a soltava. Era comum aos dois a
tal da asfixia erótica. Era raro fazê-la perder a consciência enquanto
transavam, mas naquele dia talvez, ele não lembra, talvez ele tenha apertado um
pouco mais. Ele não lembra.
Ele que assim que pegou no pescoço de Lavínia, ela parou de gritar. Fez um
silêncio que há muito não ouvia. Um silêncio que lhe acompanha até hoje. Um som
de paz. Ele lembra que seus olhos verdes ficaram abertos durante todo aquele
momento. Não piscaram nenhuma vez. Eram lindos seus olhos verdes. Duas
piscinas. Olhos verde mar, mais claros que os seus. Era difícil não ser
hipnotizado por aqueles olhos. E naquele silêncio, era lindo vê-los. Ele
apertou o pescoço de Lavínia achando-a a mais linda das mulheres. Como a amava.
Naquele silencio e paz, diante de tanta beleza, ele teve a certeza de que a
amava e de que nunca havia amado tanto uma pessoa. Era ali, prestes a se tornar
só seu corpo, a mais belas das mulheres. Ela era um anjo. E ele queria amá-la,
assim, angelicamente, para sempre. Naquele silêncio e paz, diante de um anjo,
ele estava feliz.
Só percebeu que a matara quando aqueles olhos lindos e verdes perderam o
brilho, ganharam uma tonalidade cinza. Soltou seu pescoço com dores na mão, de
tanto tempo, não sabe o quanto, contemplando os olhos da esposa e apreciando o
silêncio. Ele não a queria morta, mas seu primeiro pensamento era de que nunca
a vira tão bonita.
Lavínia era uma mulher vil, oportunista, maquiavélica e linda. Era mais
linda que todas as mulheres e era também a mais sedutora delas. Quando ele já
não a servia, passou a destratá-lo e, pior, a gritar com ele. Gritava quando
brigava, gritava quando falava, gritava quando sorria, gritava até quando
dormia. A todo momento, ela gritava com ele. Se havia algo que dava prazer em
Lavínia nos sues últimos tempos, era gritar com ele. Ela gritava e em seguida
ria. Caia na gargalhada ao vê-lo desesperado e incomodado com seus gritos. Por
muito ele aturou os destratos, não se importava com os xingamentos, mas os
gritos ele nunca suportou. Ele sempre pedia a ela para parar e ela nunca
parava. Até que parou para sempre. Mas mesmo vil, Lavínia não merecia uma morte
assim.
Seu corpo foi jogado ao mar quase uma semana depois de sua morte. O álibi
que ele dera à polícia era fraco, mas a policia não suspeitou dele. A família
dela não acredita no desaparecimento e vê o isolamento do marido como uma
profunda depressão pela perda da mulher. Eles sabem que ele a amava muito e que
nunca a mataria.
Mas ele a matou e chora todo dia pela sua morte. E agora olha para o
espelho, vendo a figura decrépita que se tornou. A imagem refletida no espelho
já não era a sua. E a imagem do espelho já não era mesmo. A imagem do espelho
ria. De inicio, ria de canto de boca, um pequeno sorriso, que se transformou
lentamente em um riso acido, seguido por um riso histérico. Histérico e
satisfeito. A imagem a sua frente já não era sua. Seu reflexo era forte como
sempre fora. E ria com uma satisfação primitiva e gutural, um riso alto. Ria
com os olhos vermelhos, vivos, com uma gargalhada frenética a mostrar todos os
dentes. E os dentes eram grandes, a boca era grande, era, a imagem histérica de
si, grande e assustador.
Ele, que olhava a tudo com espanto, teve medo da sua imagem. Aquele homem
que ria e o assustava era o mesmo que não agüentou ser maltratado pela a
esposa. Era ele, a imagem e não ele, quem via, o assassino. Ele disse,
assustado e quase sem voz: “Assassino...”
E a imagem, sem parar de rir, lhe respondeu: “Eu te libertei daquela
vagabunda! Você é livre! E agora eu quero viver!!”
E ele então deu um soco no espelho, quebrando-o em pedaços que caíram ao
chão. Pedaços que ainda refletiam sua imagem e essa imagem, estilhaçada,
gargalhava ainda mais, como se o som dos mil pedaços se amplificasse por mil
vezes. E a imagem do espelho quebrado, entre gargalhadas e risos, começou a
falar “O assassino é você, o assassino é você”.
E
começou falando baixinho, bem baixinho e foi aumentando a voz, pouco a
pouco. Ele, o homem, pisoteava os cacos de vidro no espelho, mas,
quanto mais pedaços ele criava, mais altas eram as gargalhadas e as
palavras
que ele falava. E as palavras, altas, agora eram gritos, gritos,
gritos...
E ele, quase já em prantos, suplicou “Não grite comigo, por favor, não grite
comigo”, no que os gritos ganharam mais força... “O assassino é você!!! O
assassino é você!!!”.
Com um pedaço pontiagudo de vidro em cada mão, ele lentamente e com toda sua força golpeou os próprios
ouvidos, alternando os lados, uma, duas, três, quatro vezes e mais, até cair no chão. Fez-se novamente o
silencio e a paz. E era a maior paz do mundo. E naquele silencio ele sorriu e
achou bonito o vermelho de sue sangue refletido em mil pedaços. Em um certo
momento, sentiu-se cansado e fechou os olhos.
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