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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Gritos e Silêncios

Olhava fixamente para o espelho. Era um espelho de corpo inteiro. Era um espelho liso e grande em uma pequena sala quase vazia e que estava ali para dar a impressão de um espaço maior. Olhava intrigado para seus movimentos invertidos. Olhava fixamente para o espelho. Olhava-se, olhos nos olhos, e seus olhos, verdes escuro, estavam vermelhos. Queria não mais beber. E queria nunca mais chorar. 

Fazia três meses que bebia e chorava, diariamente. Fazia três meses que não saia de casa, exceto para beber e para chorar. Comer, eventualmente. Fazia três meses que matara sua esposa. Fora um acidente. Sim, houve um briga, sim, eles discutiram, mas ele só queria que ela parasse de gritar. Gritar com ele. Que ao menos Lavínia gritasse com as paredes, com as plantas, com outros, com o espelho. Mas não com ele. Ele não agüentava mais seus gritos. Lavínia gritava com ele fazia um tempo e ele sempre pedia para ela parar. Dizia que ela podia dizer o que quisesse, que podia lhe xingar, lhe maldizer, lhe amaldiçoar, mas, gritar, por favor, ele não agüentava. E, naquele dia, três meses atrás, os gritos dela lhe pareceram insuportáveis. Ele só queria que ela se calasse.

Ele olhava seu corpo pelo espelho. Ele costumava ser grande, corpulento, alto, largo, mas o que ele via era a imagem de um flagelo, um homem pequeno, sujo, sórdido, de uma feiúra obscena. Tinha as mãos grandes, largas, cheia de veias e pequenas cicatrizes, marcas. Tinha dedos grossos. Três dias depois que a matara, as marcas destes dedos eram como duas luvas pretas no pescoço de Lavínia. Pensou apertar seu pescoço com a mesma força do que quando faziam sexo e ele a deixava sem ar, fazendo-a gozar logo assim que a soltava. Era comum aos dois a tal da asfixia erótica. Era raro fazê-la perder a consciência enquanto transavam, mas naquele dia talvez, ele não lembra, talvez ele tenha apertado um pouco mais. Ele não lembra. 

Ele que assim que pegou no pescoço de Lavínia, ela parou de gritar. Fez um silêncio que há muito não ouvia. Um silêncio que lhe acompanha até hoje. Um som de paz. Ele lembra que seus olhos verdes ficaram abertos durante todo aquele momento. Não piscaram nenhuma vez. Eram lindos seus olhos verdes. Duas piscinas. Olhos verde mar, mais claros que os seus. Era difícil não ser hipnotizado por aqueles olhos. E naquele silêncio, era lindo vê-los. Ele apertou o pescoço de Lavínia achando-a a mais linda das mulheres. Como a amava. Naquele silencio e paz, diante de tanta beleza, ele teve a certeza de que a amava e de que nunca havia amado tanto uma pessoa. Era ali, prestes a se tornar só seu corpo, a mais belas das mulheres. Ela era um anjo. E ele queria amá-la, assim, angelicamente, para sempre. Naquele silêncio e paz, diante de um anjo, ele estava feliz.

Só percebeu que a matara quando aqueles olhos lindos e verdes perderam o brilho, ganharam uma tonalidade cinza. Soltou seu pescoço com dores na mão, de tanto tempo, não sabe o quanto, contemplando os olhos da esposa e apreciando o silêncio. Ele não a queria morta, mas seu primeiro pensamento era de que nunca a vira tão bonita. 

Lavínia era uma mulher vil, oportunista, maquiavélica e linda. Era mais linda que todas as mulheres e era também a mais sedutora delas. Quando ele já não a servia, passou a destratá-lo e, pior, a gritar com ele. Gritava quando brigava, gritava quando falava, gritava quando sorria, gritava até quando dormia. A todo momento, ela gritava com ele. Se havia algo que dava prazer em Lavínia nos sues últimos tempos, era gritar com ele. Ela gritava e em seguida ria. Caia na gargalhada ao vê-lo desesperado e incomodado com seus gritos. Por muito ele aturou os destratos, não se importava com os xingamentos, mas os gritos ele nunca suportou. Ele sempre pedia a ela para parar e ela nunca parava. Até que parou para sempre. Mas mesmo vil, Lavínia não merecia uma morte assim.

Seu corpo foi jogado ao mar quase uma semana depois de sua morte. O álibi que ele dera à polícia era fraco, mas a policia não suspeitou dele. A família dela não acredita no desaparecimento e vê o isolamento do marido como uma profunda depressão pela perda da mulher. Eles sabem que ele a amava muito e que nunca a mataria. 

Mas ele a matou e chora todo dia pela sua morte. E agora olha para o espelho, vendo a figura decrépita que se tornou. A imagem refletida no espelho já não era a sua. E a imagem do espelho já não era mesmo. A imagem do espelho ria. De inicio, ria de canto de boca, um pequeno sorriso, que se transformou lentamente em um riso acido, seguido por um riso histérico. Histérico e satisfeito. A imagem a sua frente já não era sua. Seu reflexo era forte como sempre fora. E ria com uma satisfação primitiva e gutural, um riso alto. Ria com os olhos vermelhos, vivos, com uma gargalhada frenética a mostrar todos os dentes. E os dentes eram grandes, a boca era grande, era, a imagem histérica de si, grande e assustador.
Ele, que olhava a tudo com espanto, teve medo da sua imagem. Aquele homem que ria e o assustava era o mesmo que não agüentou ser maltratado pela a esposa. Era ele, a imagem e não ele, quem via, o assassino. Ele disse, assustado e quase sem voz: “Assassino...”

E a imagem, sem parar de rir, lhe respondeu: “Eu te libertei daquela vagabunda! Você é livre! E agora eu quero viver!!”

E ele então deu um soco no espelho, quebrando-o em pedaços que caíram ao chão. Pedaços que ainda refletiam sua imagem e essa imagem, estilhaçada, gargalhava ainda mais, como se o som dos mil pedaços se amplificasse por mil vezes. E a imagem do espelho quebrado, entre gargalhadas e risos, começou a falar “O assassino é você, o assassino é você”.

E começou falando baixinho, bem baixinho e foi aumentando a voz, pouco a pouco. Ele, o homem, pisoteava os cacos de vidro no espelho, mas, quanto mais pedaços ele criava, mais altas eram as gargalhadas e as palavras que ele falava. E as palavras, altas, agora eram gritos, gritos, gritos...

E ele, quase já em prantos, suplicou “Não grite comigo, por favor, não grite comigo”, no que os gritos ganharam mais força... “O assassino é você!!! O assassino é você!!!”. 

Com um pedaço pontiagudo de vidro em cada mão, ele lentamente e com toda sua força golpeou os próprios ouvidos, alternando os lados, uma, duas, três, quatro vezes e mais, até cair no chão. Fez-se novamente o silencio e a paz. E era a maior paz do mundo. E naquele silencio ele sorriu e achou bonito o vermelho de sue sangue refletido em mil pedaços. Em um certo momento, sentiu-se cansado e fechou os olhos.

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