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quinta-feira, 16 de junho de 2011

Eram feitos de suor e sonhos

Era óbvio, explícito, claro e evidente. Era certo, previsível, uma verdade desesperada e estridente. Era uma questão de tempo. O que não se sabia era quando aconteceria.
 
Eram intensos, no amor e na loucura, na raiva e na doçura. Amavam-se, disso não havia dúvidas, por mais que fossem evidentes as diferenças, os atritos, os tapas e as mágoas. Não existia, para eles, amor sem mágoa. Era implícito que, amando, haveria mágoas. Odiavam-se, não como inimigos, mas como verdades antagônicas em um embate, como se fossem, um ao outro, o reflexo perfeito das imperfeições que teimavam em esconder. Eram feitos de suor e sonhos, mais sonhos que suor, e às vezes feitos de sede e fogo. Não eram, não sabia ser, não podiam ser, indiferentes um ao outro. Contagiavam-se e se contaminavam de emoções, às vezes na mesma direção, às vezes não. A felicidade de um podia causar no outro felicidade maior ou um ódio gigantesco, dependendo das razões, das causas, do envolvimento. Amavam deixar o outro feliz, ser o motivo e a razão, mas morriam, se desfaziam, quando não eram. Era assim que se traiam, sendo felizes com o resto da vida que não fossem eles em eles mesmos.

Poucos sabiam, de fora, como eles sobreviviam aquela relação. E aquele casal sabia viver se fosse assim, na base do exagero, beirando o desespero. Como se só houvesse esperança na desesperança. Completavam-se e se bastavam e viviam aquela simbiose doentia.


Era evidente o que aconteceria, todos percebiam. Passaram-se anos, coisas mudaram, o tempo era outro, pessoas vieram e se foram, mas, na essência, tudo estabelecido naquelas regras permanecia. Eram feitos de pedra e insistência. E, um dia, aconteceu.


Ela entrou em casa, falante, vibrante, entusiasmada com as novidades do seu dia, querendo que ele fosse sua platéia e lhe dedicasse a atenção devida. Não eram grandes novidades, ou melhor, não se soube se eram ou não. Nunca se soube. Ele, pela primeira vez em todos aqueles anos não conseguiu ter qualquer reação às palavras e ao sentimento da mulher. Enquanto ela falava, ele ficava inerte, estático a sua frente, vendo-a falar, sem de fato escutar ou compreender qualquer palavra. Não sorriu. Não rosnou. Nem sequer mexeu a sobrancelha. Via a mulher gesticulando virtuosamente, falando e falando e simplesmente não a reconheceu. Era como se nunca a tivesse conhecido, como se viesse a jogar um jogo por longo tempo e, bem antes do fim, esquecesse as regras e perdesse todo o interesse. Ele olhava a mulher e se perguntava quem era ela. E quem era ele.


Ela demorou a perceber o que estava acontecendo e, bem verdade, nunca chegou de fato a compreender aquela cena. Soube, apenas, que algo acontecia ali naquele momento. Tentou as coisas práticas como, você está bem, você está com fome, você está doente, aconteceu alguma coisa, você tem uma amante, mas o homem se bastava em lhe responder diretamente as perguntas, sem dar chance a mulher de entender a questão. Ele também não entendia. Sabia exatamente que, desde que ela havia adentrado aquele apartamento, não a amava mais, mas não sabia a razão e ele precisava de uma razão para falar. E, pela primeira vez naquela turbulenta relação, se fez o silêncio. Um silêncio frio e escuro, sentimentos que ambos, desde sempre, nunca haviam sentido.


O silêncio fez-se por dias. Tantos que não se sabe ao certo quantos foram.

Ela precisou de tempo para saber o que acontecia. Apegou-se às questões práticas como trabalhar, comprar comida, cozinhar e, em seu desespero, gritava ou gargalhava com as plantas, falava com as paredes, chorava no chuveiro. Exercitava sua loucura sem seu parceiro e não conseguia compartilhar com ele o mesmo olhar vazio ou mesmo aquele beijo frio. Imaginava coisas mil, seguiu-o até o trabalho, contratou detetive, sugeriu que entrassem em uma academia, queria mudar algo que havia acabado de mudar, mas no fundo, no fundo, queria ela que fosse tudo como antes. Ele, mergulhado em seu silêncio, buscava explicações para coisas inexplicáveis e nada queria e observava-a, com a reticência daqueles que deixam de amar, perplexo com as loucuras daquela mulher.

Aconteceu o que todos achavam que ia acontecer. O que era, desde sempre, evidente e obvio. Sabia o mundo que eles não podiam ser felizes sendo como eram e que, um dos dois, em algum tempo, perceberia o tamanho da loucura em que estavam mergulhados e sairia dessa.


O que não se sabia era o que aconteceria depois.


Ele saiu de casa, isso era óbvio, mas não se sabe a onde ele foi nem onde está agora. Ela, depois de certo tempo, após muito chorar, emagrecer e envelhecer, decidiu viajar em suas férias e não voltou. Estão, ambos, desaparecidos.


Dizem aqueles, parte dos mesmos que sabiam que algo aconteceria, que ela o matou. Dizem com detalhes, sabe-se lá como, e falam que ela o chamou em casa tentando seduzi-lo e dado as negativas dele, o esfaqueou no pescoço, deixando todo sangue escorrer pelo chão da sala enquanto lhe beijava a boca. Outros discordam em parte, dizem que ela não teria a coragem de usar uma faca e que o teria envenenado logo que ele entrou na casa. Desses que dizem, concordam todos que ela ainda está, louca, naquela casa e preserva o corpo como se o homem ainda estivesse vivo. Esses acreditam ouvir os gritos dela, nas horas altas da madrugada.


Há outros que são capazes de jurar que ela nunca o mataria. Mas não dizem o mesmo dele e contam que ele a teria sufocado, bêbado, até a morte num desses encontros que certamente faziam para seus corpos matarem a saudade. Dizem ainda que ela está enterrada dentro de alguma parede daquele apartamento, que até hoje continua fechado.


Ainda outros dizem que morreram os dois. Que, sim, estavam todos certos, aqueles que diziam ser impossível ser feliz vivendo daquela maneira e o casal, que achava que só era possível viver assim. Que morreram ambos em silêncio, um ao lado do outro, um logo após o outro e que só assim tiveram paz.


E, finalmente, há quem diga, e são esses os mais românticos, que o homem e a mulher continuam vivos e que se amam do jeito que podem e que aprenderam com o silêncio uma nova maneira de seres felizes e agora o são mais do que nunca. Sabiam que aquele desamor era só a necessidade de sossego e que a paixão nunca havia abandonado aquele casal. Eles sumiram somente porque não agüentavam mais o mundo dizendo a toda hora e a todo o momento algo iria acontecer e sabiam que não precisavam explicar isso a ninguém.


Mas o que de fato aconteceu, não se sabe. Eles sumiram e há só o que dizem os outros.

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