Sábado. Acordei às 6:30h da manhã. Sempre tenho dificuldades
em acordar cedo. Ou para levantar cedo. Acho que acordar, de verdade, requer
que a mente e os reflexos estejam despertos. Não basta abrir os olhos.
Invariavelmente acordo as sete, às seis da manhã, mesmo com
o despertador colocado para as oito. E entre o acordar e o levantar parece
haver uma eternidade. São sempre infinitas as possibilidades. Possibilidades
que giram em torno da fé plena que é possível dormir apenas mais cinco minutos.
A fé é mais forte que a razão e as evidências. Mas a fé é tola também. E
insistente. O corpo sempre pede mais cama, mas a mente se culpa e se tortura,
não se entregando ao relaxamento, imprimindo ao corpo mais cansaço. Há um
habito cruel nessa rotina da briga da mente com o corpo físico e sempre quem
perde sou eu. Essa briga dura sempre mais que cinco minutos. Às vezes dura mais
de duas horas. Às vezes se estende por todo o dia, principalmente pelas as
manhãs de terça. Odeio terças feiras. Não sei por quê.
Mas era sábado, 6:30h da manhã e não havia motivo nenhum
para estar acordado. Mas, no entanto, a mente completamente desperta decidiu
ignorar os apelos do corpo por mais algumas horas de sono. Poderia ter dormido
aquele dia inteiro.
Ao contrário do dia anterior, quando o céu doía de tanto
azul, o céu daquele sábado estava estranhamente branco. Deitado na cama, eu
olhava pela janela do quarto e o céu estava branco. Não se via as nuvens, ou
melhor, o contorno das nuvens. As nuvens estavam lisas, fazendo do céu um
tapete branco, completamente branco... E é difícil não prestar atenção em um
céu tão estranho assim. E, acordado, mas não completamente desperto, eu via o
dia clarear, com pensamento vazio, mas com resquícios daquilo que sobra dos
sonhos... E pensando nos sonhos, me veio a imagem da mulher que eu encontrei no
almoço, sexta, no MAM.
Tem horas em que é preciso exercitar a memória, senão,
passado um tempo, o que a gente lembra é algo feito de poucos fragmentos de realidade,
preenchido por toneladas de ilusão. A memória é sim uma ilha de edição. E,
poxa, que delícia, que bom, nesse estágio letárgico, lembrar da mulher do MAM.
A mulher que não tinha nome, ou melhor, que não havia dito o nome, é na minha
cabeça a mulher do MAM. Tenho dúvidas se sonhei com ela naquela noite, mas
certamente sonhei com ela naquele momento de briga com o despertar.
E ali, deitado na cama, olhando um céu estranhamente branco,
eu lembrava aquele encontro mais que inusitado. Lembrava de detalhes,
recapitulava as palavras que haviam sido ditas, gestos, imagens. Tentava
reconstituir, palavra por palavra, o diálogo daquele jogo. É difícil esse
exercício para uma pessoa como eu, que só tem memória afetiva, não tem memória
dos fatos, apenas das sensações em torno dos fatos. Era, por isso, importante
acordar e pensar naquele encontro. Para que aquela história tivesse mais
realidade do que fantasia. Com o tempo, se aquele encontro com a mulher do MAM
tivesse sido o único, certamente a história viraria apenas uma fantasia. Seria,
de qualquer maneira, fantasia ou realidade, uma excelente história. E ali,
deitado na cama, brincava de lembrar e de preencher com ilusões aquilo que eu
não lembrava. E, nas lembranças, havia aquela mulher. Uma mulher espetacular.
Linda, morena, sexy, livre, deliciosamente livre e com um sorriso largo. Não
era preciso qualquer fantasia para melhorar a lembrança da imagem daquela
mulher.
E assim se passou uma manhã de sábado. Eu deitado na cama
olhando o céu branco que lentamente se desfazia, deixando aparecer azuis,
pensando no encontro do dia anterior. Pensei se eu havia dito algo errado, se
eu podia ter feito algo pra conseguir aquela mulher. Sim, certamente, mas não
sabia o que. Mas talvez não, se lá. Era, e sempre será, uma dúvida. E quando o
pensamento mudou das lembranças deliciosas daquele delicado encontro para uma
angustia e cobrança sobre o que poderia ter sido feito de melhor,
coincidentemente percebi que o céu estava totalmente azul e sem nuvens. Sem
perceber, elas se foram. Era preciso aproveitar a beleza daquele dia. Sempre é
preciso aproveitar os dias bonitos.
E assim foi. Corridinha nas Paineiras, banho de cano, água
gelada, vista do Rio, caminhada reflexiva de volta ao carro, pernas cansadas, dia
frio, com sol, mas lindo. O Rio é uma cidade que me mima. É impressionante como
ele me trata bem. E, ainda assim, com todas as distrações do mundo, com todos
os mimos, pernas cansadas e, naquele momento, fome, eu ainda pensava na mulher
do MAM. Enquanto caminhava, em um esboço de roteirista, eu planejava cenas de um eventual encontro, com
direto a olhares, cenas, pausas e suspiros. Fazia tempos que eu não me sentia
assim e, naquele momento, eu sentia-me mais seguro em fazer roteiro sobre
utopias do que sobre situações reais. Mesmo tendo acontecido o encontro no dia
anterior, eu sabia que era praticamente impossível encontrá-la novamente. E,
além disso, dificilmente haveria, nesse segundo encontro, o impacto, a surpresa
e as impressões marcantes ocorridas no dia anterior. A sorte não bate duas
vezes na mesma porta. Ou não sempre.
Já eram quase uma da
tarde quando o telefone tocou. Um amigo. Amigos são poucos. Não o via fazia uns
oito meses, talvez quase um ano. Essa coisa de trabalho, de tempo, de família.
Éramos quase vizinhos, mas as agendas não batiam. E era um dia livre, sem nada
o que fazer. Um convite para almoçar. Em instantes, acordamos ir pra Santa. Eu
estava ali do lado, ele estava perto, o dia estava lindo, mas o frio não nos
convidava para uma praia.
Mineiro. Por muito tempo eu morei no Mineiro. Antes mesmo de
ter morado em Santa. Casa é aquele lugar onde você se sente acolhido, protegido
e livre. E ali, entre pasteis de feijão, turistas, a cumplicidade dos garçons,
fotografias, enfeites, Original gelada e batida ‘afrodisíaca’ de gengibre, eu
me sentia assim, acolhido. Mineiro sempre teve um lance de ser o sofá de
casa... E foi lá, no Mineiro, naquele sábado lindo, céu azul de outono, que fui
almoçar com *.
Sábado sempre tem aquela fila absurda no Mineiro. Todo dia
tem feijoada, mas nem sempre os cariocas têm tempo, durante a semana, para se
dedicar a uma feijoada. Ainda mais a
feijoada do Mineiro. Eu cheguei antes que *, coloquei meu nome na lista de
espera, pedi uma Original e um copo. Fiquei na calçada observando as pessoas e
nesse momento, mais do que antes, eu desejei a mulher do MAM. Eu olhava as
pessoas em volta e não via, de fato, ninguém. Cheguei mesmo a fechar os olhos e
a lembrar do cheiro e do sorriso largo daquela mulher. E, naquele momento,
observando as pessoas sem vê-las, senti-me vulnerável e ao mesmo tempo são. Era
tão obvio e fácil desejar uma ilusão e a mulher do MAM, mesmo tendo sido real
naquele encontro, era uma ilusão. Nesse momento, eu respirei. Respirei de fazer
força para expirar todo o ar do fundo dos meus pulmões, para em seguida
enche-los com a mesma violência. E, com esforço, procurei pessoas para fixar a
visão. Era preciso ver a realidade. E a realidade eram duas loiras, gringas,
conversando ao meu lado, em um alemão fluente e incompreensível aos meus
ouvidos. Não compreender uma palavra do que as pessoas estão falando, mesmo
quando estão a poucos centímetros de você, faz parecer haver uma distância
entre você e as pessoas. E eu, em busca de alguma realidade, me vi observando
aquelas mulheres, loiras, gringas, reais e distantes. Observava-as como quem vê
gazelas no zoológico, colado às grades, com misto de curiosidade e indiferença,
com uma curiosidade quase cientifica. Não me importei de ser percebido e era
quase impossível não ser, pois praticamente eu participava da conversa. Mas,
mesmo reais, eram elas, as gringas, menos sedutoras do que o mar de
possibilidades que era a fantasia da mulher do MAM. Era um dia bonito, mas era
um dia estranho. O mundo estava estranho. Ou estava eu.
Fui salvo por *. Na hora que a situação que eu criara
sozinho estava se tornando angustiante, * chegou. E de cara, percebeu que eu não
estava bem. É uma sorte não ter que explicar certas angústias. Quando * chegou,
me acalmei. E tomamos cerveja em pé por um tempo. E falamos amenidades. E de
novo o dia estava bonito de novo.
* era, ainda é, sempre será, um amigo irmão. Amizade
daquelas que transcende tempo e distância. Mas, já disse, não o via há algum
tempo e não sabia o que ele estava fazendo da vida. Tomamos umas quatro
garrafas antes de conseguirmos uma mesa. E nessas quatro garrafas falamos de
trabalho, de saúde, de viagens. Ele continuava com o mesmo emprego, mas estava
procurando algo mais calmo, que lhe rendesse mais tempo livre. Havia feito uma
cirurgia para uma lesão no ombro, causado por um tombo de moto. Ele estava
planejando uma viagem para Bolívia. E eu escutava ele falar. As histórias que
ele contava eram reais. Ao menos para ele, elas eram reais. Mas, pra mim, o que
ela falava era ilusão. Era preciso imaginar as cenas, as situações, as
possibilidades. Mas valia, pra mim, a distração.
Estávamos sentados em uma mesa colada à parede e eu estava
de frente para a rua. Sem perceber o meu silêncio, continuava a falar. Eu
continuava a ouvir, mas observava também as pessoas na rua. Era preciso
distrair-me. E ele falou das mulheres com que havia saindo. Contou por auto que
havia saído por um tempo com a irmã da minha ex mulher, mas que agora estava
namorando. E mais, estava completamente alucinado com a mulher que conhecera em
um encontro fantástico. E, eu, pegando esse gancho de encontros e cansado de
tanto escutar, vomitei toda a minha ansiedade e desconforto. Interrompi a história
de *, contando todos os detalhes, reais e inventados, do encontro com a mulher
do MAM.
Descrevi o encontro, colocando agora em palavras todas as
sensações e impressões que tive. E falei da minha surpresa, da minha falta de
expectativa, da minha vulnerabilidade, do poder e da força da mulher livre que
eu havia conhecido. Verbalizei fantasias de um segundo encontro, o que eu
faria, o que eu não faria. Falei de estratégias para procurá-la e a certeza,
que até então eu não tinha, de que eu ainda a encontraria de novo. E eu falei
tudo isso sem a menor calma, lógica e ordem. E * me escutava, feliz e confuso,
tentando se entender no caos do meu discurso. Do pouco que entendia, e não entendia
quase nada do que eu falava, ele percebeu que eu estava feliz. E eu estava.
Havia, depois de muito tempo, algo que me angustiava e isso me deixava feliz. Eu
havia passado muito tempo indiferente ao mundo, nada me interessava, mas a
angustia era um sinal de vida e isso me deixava feliz.
Falei tanto, por tanto tempo, que cansei. E rimos. Estávamos
já na oitava garrafa de cerveja e na sexta dose de gengibre. Longe de estarmos
bêbados, estávamos felizes. Cada um com seus motivos. E rimos. Era bom estar
com um amigo naquela hora. Era um dia
muito bonito.
E, no meio daquele riso, pareceu-me que aquele dia bonito
seria também meu dia de sorte. A mulher do MAM entrava lentamente no Mineiro. Perdi
o ar. Olhei-a com olhos de câmera lenta e eu já não escutava nem mais um som
das mesas vizinhas. Eu escutava apenas as batidas do meu coração. Ela vestia um
sorriso largo, cabelos soltos, óculos escuros, grandes. Vestia também uma calça
jeans justa, baixa, com uma blusa preta, duplamente generosa, por deixar a
mostra uma cintura fina com barriga definida, numa pele dourada pelo sol, e
pelo generoso decote que insinuava mais que mostrava e que, em mim, dava água
na boca. Ela, nos meus olhos de câmera lenta, no alto de seus saltos vermelhos,
movia com uma harmonia cinematográfica. Seus cabelos tinham um movimento que
competiam com o de sua cintura e eu já não sabia para onde olhar.
Perdi todas as estratégias e idéias que havia imaginado. Eu
estava chocado, surpreso, impressionado, maravilhado, admirado, arrebatado por
aquela imagem. Eu estava sem ar. Não havia ar suficiente no mundo para mim.
E ela vinha na minha direção, sorriso largo e passos firmes
e harmônicos. E eu, abestado, sorri de volta. Respirei e senti que, em
instantes, já seria possível falar.
* se levantou. Eu também. Ele a e mulher do MAM
cumprimentaram-se com um beijo singelo na boca. Ele me apresentou, “essa é Ana,
minha namorada.”
E eu perdi o ar. De novo.
Ana. Palindromicamente Ana.
Sem tirar os óculos escuros, ela estendeu a mão, com seus braços
longos, delicados e definidos, e era uma mão firme e disse “prazer”.
E eu pensei em todos os sentidos da palavra prazer, seus sinônimos,
suas aplicações e possibilidades. E sem, ar, eu nada respondi.
Sentamos e * começou a falar, mas havia, ainda para mim, o
maior silêncio do mundo. Via de canto de olho os movimentos dos lábios de *,
mas eu só ouvia o silêncio dos meus pensamentos, tentando aterrissar e colocar
de novo os pés no chão. Escutava, além, mais forte do que antes, as batidas do
meu coração.
No que Ana, e a ela eu escutei claramente, fala ao garçom:
— Que vinho você tem?
— Não sei, vou ver, dona.
— Não vê, não, rapaz, me traz uma taça do que você tiver.
— Não trabalhamos com taças, dona.
— Então me traz uma garrafa, por favor.
E nisso acabou-me o ar, completamente, e nem às batidas do
meu coração eu escutava mais.
Foi um dia bonito aquele, mas estranho. Muito estranho. Naquele dia eu voltei a fumar.
A sorte não bate duas vezes no mesmo lugar. Ou não sempre.