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terça-feira, 20 de setembro de 2011

A triste história de um homem de sorte


Ele sempre achou que tinha uma sorte extraordinária.

Ele não teve aquele tipo sorte de nascer em berço de ouro. Nem de prata. Nem mesmo de bronze.  Não teve a sorte de ter uma família normal – se é que há alguma família que seja normal. Família normal pra mim é a síntese do antagonismo. Mas fato é que a dele era menos normal que a maioria. Ou ao menos, ele pensava assim.

Ele não teve a sorte de ser um gênio e ter tido uma carreira profissional meteórica e ter ganhado rios de dinheiro. Não havia sido nem um super atleta ou um prodígio em qualquer área. Não era famoso, não ganhou na mega-sena. De fato, não ganhava nem no bingo, nem na rifa e nem na porrinha...

Não achava nada disso sorte. Sorte de fato. Sorte era o que ele tinha. Tinha certeza de que era um cara de uma sorte extraordinária. Tinha absoluta certeza.

Nada de mal lhe acontecia. Trabalhava, estudava, se divertia, tinha bons amigos, errava e acertava na vida e o saldo era sempre bom. Por isso se achava um cara de sorte.  Não lhe sobrava dinheiro, nem tampouco lhe faltava. Aos amigos, tinha sempre alguns por perto. E se não tivesse, o acaso lhe aparecia com novos amigos ou amigos de ocasião.

Sempre que algo ruim inesperadamente acontecia, era certo de que algo extraordinariamente bom iria lhe acontecer em seguida. Assim, ainda que se machucasse com os tropeços que dava na vida, tinha muita confiança de que logo em breve estaria rindo do que passou.

Sua sorte estava na maneira de olhar o mundo.

Até que um dia sua sorte mudou.

Voltava do trabalho em uma segunda feira, tarde da noite e chovia fino. Ruim para andar de moto com o asfalto escorregadio. Parou no primeiro bar que lhe apareceu no caminho de casa. Estava cansado e, justamente por ser um cara de sorte, sabia que não era bom abusar dela. Segunda, frio e chuva, bar lotado.  Uma luz forte, amarela, mesas cheias, pessoas bonitas, barulho, copos de cerveja, garçons transitando em espaços apertados, equilibrando bandejas com mais e mais cervejas, pessoas se espremendo para fumar debaixo de um pequeno toldo.

Passou o olho por todo o bar em busca de conhecidos. Estava cansado e uma conversa descompromissada lhe ajudaria passar o tempo da chuva. Não achou ninguém, mas arrumou-se em um pequeno espaço no balcão, onde pode pedir uma coca e um sanduiche de filé. Pensou em tomar uma cerveja, mas de moto na chuva não seria bom abusar da sorte.

E a sorte veio.

Dois olhos verdes caminhavam em sua direção, fixos nele, acompanhados de um sorriso largo, leve e que lhe parecia muito familiar. Pertenciam a um rosto simétrico, de traços delicados, mas expressivos, demonstrando, na embalagem, toda a personalidade  que havia naquele corpo. Cabelos nos ombros, castanhos, não escondiam o pescoço alvo, firme e longilíneo que equilibrava aquele movimento de corpo. O pescoço direcionava o olhar dele aos ombros, nem tão largos, mas nem tão estreitos, gentilmente balanceados e harmônicos. Seios firmes, médios, vivos e pulsantes sob um vestido preto, longo e largo. Eram seios quase suplicantes. O vestido, tecido molinho, denunciava as formas do corpo, sem nada mostrar.
Dois olhos verdes caminhavam em sua direção, carregados por passos firmes e lentos. Era uma mulher de quase seus um metro e setenta, linda, que com seu brilho e sorriso destoava de toda aquela cena de bar na segunda de chuva.  E o sorriso familiar...

Nesses momentos ele reafirma sua certeza de ser um cara de sorte. Mas, dessa vez, ele estava errado.

Não tinha idéia de quem era ela, mas ela veio, firme e bela, lhe cumprimentado com um longo abraço. Longo, de minutos. Passando uns trinta segundos de estranhamento, ele imóvel, percebeu a textura e os contornos da cintura daquela mulher, bem como a firmeza mais rígida que o normal de seus seios. E aquilo lhe deu água na boca.

Desvencilharam-se do abraço e agora os olhos dela estavam cheios de lágrimas, mas o sorriso largo e honesto continuava estampado no rosto. Ela lhe era muito familiar, mas ele foi incapaz de reconhecê-la. Chegou a pensar que a bela moça talvez o tivesse confundido com outro alguém, mas não. Ela sabia quem era ele, sabia tudo dele. Mas ele não.

Ela não podia acreditar, mas percebeu, no constrangimento e no desespero dos olhos dele que ele não mentia. E foi ai que ela chorou mais. E quem se desesperou foi ele. O bar inteiro parou para ver a cena, mas eles não se importaram. Na verdade, nem perceberam. Apenas se abraçaram novamente.

Foram, então, fugir daquele barulho, e, fora do bar, sob a chuva fina, conversaram.

Ela lhe explicou que era sua ex-mulher e que haviam sido casados por 3 anos. E que fazia exatamente um ano, naquela segunda fria e chuvosa, que eles haviam se separado. Que eles se separaram por motivos fúteis os quais ela não lembrava, que ela saiu de casa, confusa e triste com coisa que há tempos ela não sabia o que era. E que vê-lo, ali, naquele dia, tremenda coincidência, tinha sido um sinal de que ela nunca havia o esquecido ou deixado de amá-lo.

E ela falou isso com detalhes, contando como haviam se conhecido, por onde tinham viajado, com detalhes da casa onde moraram. Falava aos prantos, com as lágrimas que se confundiam com a água da chuva em seu rosto, indignada com o silêncio dele, olhos esbugalhados, que escutava a tudo sem dar uma palavra, sem emitir um som.

Ele estava em choque. Escutou atento tudo o que aquela mulher linda lhe falava. Pensou que ela era louca, mas ela sabia todos os detalhes da sua vida, da sua casa, de tudo. Tudo o que ela falou encaixava na história da vida dele, exceto ela. Reverberava em sua cabeça “que fazia exatamente um ano, naquela segunda fria e chuvosa, que eles haviam se separado”.

A chuva passou.  E ele falou apenas “Desculpa, mas eu não lembro.” Dela, ele só lembrava o sorriso. Era a única coisa que havia sobrado pra ele. Nem seu nome ele sabia. E quando ele lhe perguntou, ela não lhe disse. Chorou aos berros e correu, indignada, humilhada, triste, maltratada.

Ele ficou parado. Olhando-a correr. Corpo magro, passos firmes, mesmo no desespero, uma mulher cheia de leveza. Não fazia sentido, naquele momento, ir atrás dela. Estava ele em choque, não sabia o que dizer. Havia dito a verdade e a verdade é que ele não sabia quem era aquela mulher.

E naquele dia a sua sorte acabou.

Na mesma noite, foi pra sua casa e revirou seus álbuns de fotos, seus papeis, suas cartas, seus e-mails. Revirou tudo atrás de uma pista a respeito daquela mulher. Espalhou roupas e gavetas pelo chão, buscou no alto do armário e não havia nada sobre aquela mulher na sua vida, mas, por conta daquele encontro, ele sentia que tinha sido verdade e que ele apenas não lembrava. Ele não achou nada real, exceto um bilhete, numa caixa de sapatos, assinado “com todo amor do mundo, M.”

Ele não sabia quem era M, mas reconhecia a letra, assim como reconhecera o sorriso.

Pensou em ligar para amigos, para família, para alguém, mas ele não queria passar por louco. Não se lembrava de ninguém, nunca, ter comentado sobre ele ter sido casado, ainda mais aquele tempo. Seria estranho perguntar a eles qualquer coisa a respeito. Seria mais estranha ainda qualquer resposta que ele viesse a ter. Preferiu o silêncio.

Foi trabalhar no dia seguinte atrasado, desconcentrado. Algo havia mudado. Sentia-se, e nisso estava certo, pela primeira vez na vida, sem sorte. Depois do trabalho, foi de novo àquele bar, na esperança de encontrá-la. Perguntou ao garçom se ele se lembrava da noite passada e se, por acaso, ela costumava freqüentar aquele lugar, no que o garçom respondeu, sem pestanejar, que sim, que lembrava da noite anterior e que a moça freqüentava o bar regularmente, quase que uma vez por semana. Perguntou-lhe também se ele sabia o nome da moça, no que ele respondeu que não ao certo, mas que o garçom que estava de folga naquele dia certamente sim. Ficou até o bar fechar, esperando um sinal dela e nada. Passou a noite insone, em casa, com a cabeça a mil, pensando...

No dia seguinte, chegou mais atrasado ao trabalho e com menos concentração. E, como na noite anterior, foi novamente àquele bar. E novamente esperou. E novamente, nenhum sinal da mulher. Também não descobriu seu nome. Mais uma noite insone.

E assim se seguiu uma semana, na mesma rotina. Na segunda semana, perdeu o emprego. Justa causa. Tinha umas economias e achou que seria até conveniente ter mais tempo para procurá-la. Estava cego e obcecado.

Suas buscas eram em vão e sempre terminavam a noite naquele mesmo bar. Via o movimento, passou a conhecer as pessoas, mas, depois de um mês os garçons e o dono do estabelecimento acharam estranho aquele comportamento.  Alias, seu comportamento mudou. Estava econômico com as palavras, mais seco, mais agressivo, bem diferente de antes. Seu corpo também havia mudado. Emagreceu muito, estava com os ossos do rosto aparecendo, com a barba por fazer. Esqueceu as noções de higiene, de tempo, de espaço. Sua vida passou a ser achar aquela mulher.

Fugia dos amigos e dos conhecidos. Não queria lhes explicar o que acontecia e preferia o silêncio. E, em muito pouco tempo, os amigos e conhecidos deixaram de lhe procurar. Em dois meses era visto agora como um doente, quase um indigente. Foi proibido de entrar no bar, dado seu estado e aparência, mas continuava, religiosamente, indo todo dia na sua porta. Suas economias começaram a ficar escassas e passou a vender suas coisas. De inicio, vendeu os livros, os discos, os quadros. Depois as louças, os móveis, a moto, a casa. Passou a morar num quarto, tipo pensionato, perto do bar.

Passado seis meses, ele não era nada do que havia sido. Não tinha mais nada, nem as memórias. Em menos de um ano após aquele encontro, ele morreu, sem sorte e sem deixar saudade, exceto naquela moça que ele esqueceu. E que, aliás, nunca ninguém mais viu.

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