São cinco horas da manhã. O dia amanhece e ela nem dormiu. Olha
pela janela suja do ônibus a vista do mar. À frente, vê o contorno suave da luz
por detrás da montanha. E denuncia-se um céu sem nuvens de um dia que será quente.
De hoje em diante todos os dias serão quentes. Seu corpo está exausto, foram
horas de trabalho. Trabalho e prazer. Tem prazer no trabalho pelo simples motivo
que, sem trabalho, sua vida é um caos. Pensa assim ou se esforça em acreditar
nisso. Pensa assim ou se esforça faz tanto tempo que já não se importa mais. O
importante era que, ali, naquela manhã, naquele dia, ela tem um trabalho. Ela
está exausta e feliz. Passou seis meses sem ganhar nenhum tostão. Sua vida
estava um caos. E agora tinha um emprego. Um emprego de merda. Mas, ela sabia –
e ela sabia bem – que merda é não ter emprego. E mesmo sabendo que era aquele
um emprego de merda ela estava feliz. Olha pela janela, vê a paisagem mudar e o
mundo passar, e acredita que as coisas estão mudando. Finalmente. Ela tem fé. E ela nem sabe que tem fé.
Seus pensamentos estão vivos e dispersos. Enquanto o ônibus avança
veloz pelas avenidas sem trânsito, sua cabeça dá voltas. O corpo, quando
cansado parece abrir um espaço para novas sensações da mente. E nessas
sensações misturam-se pensamentos do cotidiano, lembranças, memórias,
suposições, desejos, fantasias, medos, sonhos. E olha pela janela e pensa na
conta atrasada do celular, no conserto da máquina de lavar, na roupa pra
escolher do casamento da prima que vai ser no sábado agora. Ela conta as horas
de sono que perdeu na semana por conta dos pensamentos que tem, lembra do homem
que sorriu pra ela no elevador e que pareceu olhá-la na alma, deixando-a rubra,
lembra da última vez que teve um orgasmo. Suspira. A paisagem muda, o tempo
passa, e ela pensa que precisa conversar com seu namorado e lhe dizer que as
coisas não estão legais, mas que na verdade ela não está legal e que ele é sim
muito legal e que seria bom se ela conseguisse lhe pedir, de novo, pra ter paciência.
Ela pensa no ex e sente culpa, mas pensa de novo e respira. Ela pensa que
queria viajar, largar tudo e viajar. Deixaria o filho com o pai e viajaria um
ano ou dois. Iria a lugares que ela nunca foi, visitaria de novo os que já
conhecia. Iria sentir saudade do filho, mas tem suas dúvidas naquele momento.
Pra viajar do jeito que ela quer, ela precisa de dinheiro e pensa que podia
ganhar na mega-sena. Acumulou em trinta milhões. Guardaria vinte e cinco e com
o restante viajaria o mundo e ajudaria a família. Ela respira e pensa se
realmente ajudaria a família. Talvez por culpa, mas no fundo no fundo ela sabe
que não quer ajudá-los. Pensa nos vícios do pai e na doença da mãe e em como
está, mesmo sem querer, se tornando um misto do pior dos dois. E tem dúvidas se
é pra ser assim ou se ela pode mudar isso. Pensa nos vinte e cinco milhões e
faz as contas pra ver quanto ela poderia gastar por mês sem torrar todo o
dinheiro. Não sabe se sabe fazer essa conta e pensa no ex de novo. Talvez ele
pudesse ajudar. E ela se sente culpada de novo por pensar nele de novo. Confunde-se
e perturba-se sozinha, por isso respira. Pensa que precisa arrumar um emprego
decente, no qual não passe as madrugadas fora, no qual trabalho naquilo que
estudou, naquilo que lhe de prazer. Pensa e pensa e já não sabe realmente o que
lhe dá prazer. Lembra de novo do homem do elevador e em seguida no namorado. Eles
precisam conversar.
E assim, nesse instante, ela pensou tudo isso e está na hora
de descer do ônibus. Está perto de casa, um quarteirão de distância. Pára na
padaria, compra três pãezinhos quentinhos e cheirosos. E o cheiro afasta tudo aquilo o que ela
estava pensando. Seu corpo está exausto, mas no elevador de casa ela abre um
sorriso por estar ali. A mente começa a descansar e o sono já dá sinais. Deixa
o pão na cozinha, vê a mãe dormindo no sofá da sala, vai ao quarto e dá um
beijo no filho que também dorme. Olha o menino e vê como ele cresceu. Parece que
foi ontem que ele ainda mamava. Fez-lhe um carinho, no que ele, sem despertar,
sorriu. Sabia ele que a mãe havia chegado. Ela olhava aquilo que lhe era mais valioso
e era a prova de que ela era boa em alguma coisa. Foi à cozinha, fez um café,
sorriu, e enquanto esperava, acendeu um cigarro. Não estava onde queria estar,
mas era o que tinha pra hoje e estava feliz por finalmente aceitar que a vida
assim, uma possibilidade entre mil. Daqui a pouco seu filho acorda e é outro
dia. Ela vai esperar pra ganhar um abraço dele. Está precisando.
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