Desde pequeno era estranha sua relação com espelhos. Ao mesmo tempo em que era atraído por eles, sempre sentiu um certo desconforto com o reflexo de sua imagem. Independente do tempo ou da época, sempre achou que o cara que ele via no espelho não era ele. Não era aquela a imagem que tinha de si.
Quando era pequeno, lá pelos seus nove anos, ele era atraído pela sensação de que a imagem no espelho era próxima do real, mas não era a realidade. Buscava no espelho pequenos defeitos, distorções, imperfeições, qualquer coisa que provasse que aquilo ali era uma imitação, uma cópia. Ele tinha mania de chegar bem perto do vidro e de observar sua espessura, querendo entender qual era o mecanismo ali escondido... Com nove anos, era capaz de jurar que o cara ali a frente dele havia piscado depois e isso era divertido. Ele tinha certeza, só não tinha como provar.
Ele cresceu e enquanto crescia perdeu essa certeza. Mas ainda assim alguma coisa o atraia no espelho. Gostava da imagem que via. A pessoa no espelho era sortuda, bonita, jovem, cheio de possibilidades. No fundo, era só um adolescente pretensioso e sortudo e em algum momento da vida isso lhe bastou. Gostava do espelho também pelas distorções. Elas se transformavam em novas perspectivas e essas em novas expectativas. Olhava o espelho como quem busca um caminho ou a solução de um problema, um atalho para o futuro. Havia, ali no espelho, uma luz diferente, um novo ângulo, uma nova idéia. Era algo que o libertava, que lhe expandia. Era no espelho que ele se encontrava. E era nesse encontro que morava seu desconforto.
Em algum momento já não gostava da sua imagem. Não gostava do todo. De ver-se. Não se via belo nem bom. Era um adulto pretensioso e sortudo, mas isso já não lhe bastava mais. Incomodava-lhe não ser mais belo quanto antes, os quilos a mais, os cabelos e a pele brancos, o tempo e a saúde perdidos. Via as inúmeras possibilidades perdidas, as viagens que não fez, os lugares que não conheceu, os trabalhos que não abraçou, os amores que desperdiçou. Já não era mais jovem. Ainda não era velho. Mas a pessoa dentro do espelho já estava cansada de muitos quases, de muitos senões.
Era no espelho que ele se encontrava e sua imagem refletida carregava todo seu passado, sua história e opções. Sua história tinha muitos erros, muitos acertos e, sobretudo, muita sorte. Não conseguia ver as vitórias conquistadas pelo seu esforço, apesar de descrevê-las em seu discurso. A imagem que ele vendia era diferente da imagem que ele via ali, quando parava de frente ao espelho. Ele era uma fraude de si e ele sabia disso. Ao ver-se no espelho, tinha então olhos somente para seus erros. Não era possível mentir para si mesmo. Por trás daquela imagem de sucesso, ele se achava uma sucessão de erros contornados por uma dose cavalar de sorte.
A imagem não mentia para ele. E para não encarar essa verdade, passou anos fugindo do espelho, buscando pretextos e problemas alheios. Não queria encarar-se. Mas o encontro, apesar de adiável, era inevitável. E quanto mais tarde, mas dolorido seria esse encontro.
Um dia, cansado dos pretextos que não o levavam a lugar algum, perdido por não ter um caminho, se viu sozinho diante do espelho. Poderia ter fugido, poderia ter inventado um problema incrível para depois inventar uma solução mais incrível ainda, mas a imagem ali na sua frente estava, mais uma vez, diferente. O homem dentro do espelho era outro. Havia nos olhos desse homem uma força que o homem de fora do espelho nunca havia notado. Há tempos não se encaravam. O homem dentro do espelho, que sempre havia sido condescendente e deixava-se apenas observar, já não cabia em si. Já não se sabia quem observava quem. Já não importava quem estava dentro, quem estava fora. Eram dois homens se encarando. Um querendo fugir. Outro querendo lutar. E assim aconteceu. Finalmente encontraram-se.
Desde pequeno era estranha sua relação com espelhos. Até esse encontro, quando entendeu que não havia partes, e sim o todo, que não havia dois, apenas ele. Que não havia acertos, erros ou sorte, apenas havia o que pode ter havido. E que a sorte é sim um acerto. Percebeu tudo isso naquele encontro com sua imagem espelhada. Tomou uma surra ao se deixar parado dois segundos frente a ela e, na porrada, aprendeu. Entendeu que é impossível fugir de si e que o melhor é mergulhar dentro do espelho.
Depois desse encontro ele mudou, cresceu, foi feliz. Tornou-se um velho sem pretensões e sortudo. Morreu centenário, sorrindo e ainda com brilho nos olhos.
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