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quinta-feira, 26 de maio de 2011

Sonho da bicicleta


Ontem eu tive um sonho louco. Não sou de sonhar muito, pelo menos não enquanto durmo. Ou não lembro de sonhos. Mas este eu lembrei. Não só pela história, como pela riqueza de detalhes. Ai vai:

Aquilo era um bairro de subúrbio, não parecido com os que conheci, mas era inconfundível as ruas estreitas, de paralelepípedo e casas coloridas de no máximo dois andares, com roupas coloridas, secando ao vento no terraço.

Ele andava em sua bicicleta preta por essas ruas estreitas até chegar ao que parecia ser um campo de futebol. Era uma daquelas quadras de cimento, com marcas gastas das linhas do campo, sem traves, bem no meio de uma praça com lama, grama, poucas árvores e pouca graça. Quando chegou a praça estava deserta, ou essa foi a sensação, pois havia umas poucas crianças jogando bola ou correndo ao longe. Estava entendendo ainda quem eram aquelas outras crianças quando um homem veio e lhe tomou a bicicleta. Mas o tomar não foi aquela coisa simples de “me passa a bicicleta”. Ele não sabe como foi. Mas seu rosto doía e ele estava no chão, sendo observado com perplexidade pelas crianças que estavam na praça. E naquele instante, era ele pura vergonha.

A vergonha era tanto que, sabe-se lá por quanto tempo, ele não voltou pra casa. E ele não voltou pra casa por tempo bastante. Quando voltou, seu pai havia morrido. Ele não sabe como, nem quando, nem porque, mas seu pai havia morrido.

O tempo passou de novo. Ele cresceu. Cresceu marcado pelo roubo da bicicleta e pela morte do pai. Mais por não estar presente quando seu pai morreu. E cresceu seco, amargo, desesperanço. Não tinha família, mulher, filhos, poucos amigos, quase nenhum. Trabalhava e nisso era bom. Ele era escritor ou jornalista ou algo do gênero, mas fato é que era muito respeitado e esse respeito lhe dava um isolamento que ele sempre havia cultivado e prezava. Mas ele sabia que lhe faltava algo e que era algo que lhe havia sido roubado junto com aquela bicicleta preta.

Um dia, andando pela rua, avistou o ladrão. Ao contrario dele, o homem não envelhecera. Usava as mesmas roupas do dia do roubo – coisas de sonho, né?. Isso lhe facilitou reconhecer o ladrão. Por instinto, seguiu o homem que seguia a pé. Foram parar no mesmo subúrbio onde ele estava antes. Descobriu que o ladrão trabalhava em uma loja tipo uma lan house, que fechava cedo e que todos saiam na mesma hora, como se fosse uma saída de colégio. Vigiou o ladrão por uns cinco dias consecutivos na porta do seu trabalho e, depois de criar coragem, o seguiu até em casa. E esse caminho era um emaranhado de becos estreitos e escuros. Chegaram a casa do ladrão

Ao entrar em casa, o ladrão o surpreendeu, virando em sua direção. Antes que o ladrão pudesse lhe perguntar porque ele o estava seguindo, ele disparou dois tiros, lhe acertando o peito e a face. Não era o que ele havia planejado, nem o que queria fazer, mas foi tomado pelo medo e assim o fez. Dois tiros assustados.

Frio e calmo, decidiu esconder o corpo. Procurou naquele beco e não foi difícil achar o lugar perfeito. Era um quarto escuro, com paredes de pedra, uma única porta e uma janela alta, quase no teto. Ao voltar para buscar o corpo do ladrão, viu, numa área externa, uma bicicleta preta. Não teve a menor duvida. Era a sua. E lembrou num flash de tudo aquilo que havia acontecido, de toda humilhação que havia passado...

Levou o corpo ao quarto escuro e voltou no dia seguinte para a porta do lugar onde o ladrão trabalhava. E tudo estava na maior normalidade, sem qualquer alteração do movimento, como se nada houvesse acontecido. E assim foi por uns três dias. No terceiro dia, ele entrou na loja e perguntou onde ele estava. A dona da loja disse que não sabia, mas que tudo bem, que provavelmente ele havia ficado doente.

Ele não queria ter matado o ladrão. Queria sim, lhe dizer que sua vida era uma merda por conta daquele assalto. Que seu pai havia morrido e ele não fazia idéia do porque e que isso também era culpa daquele assalto. Que sua vida era miserável pois ele havia perdido toda a alegria na merda daquele dia. Mas agora ele não tinha mais a quem dizer isso. A angustia que ele ansiava em dividir era, agora, perpetuamente sua.

E pior, ninguém havia dado falta do assaltante, exceto, ele. O morto era agora seu único vinculo com aquilo que fora sua vida, seu elo perdido, seu descaminho. E ninguém sentia falta dele.

Ele foi à policia. Disse que seu amigo estava desaparecido e que, procurando por ele, achara o corpo e que levaria a policia até lá.

Ao chegar no quarto, não havia corpo. Havia só uma bicicleta preta.

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